Franz Kafka dizia: “Os cães de caça ainda brincam na propriedade, mas a caça não lhes escapa, mesmo que ela já corra pelos bosques.” O escritor tcheco, talvez tenha sido o maior expoente literário do Século XX no que tange esmiuçar as relações do homem e o sistema no qual o próprio se encontra inserido. Em um de seus mais célebres contos intitulado Um Artista da Fome, Kafka imagina um artista que faz da fome sua arte. Quanto mais faminto fica diante dos expectadores que o assistem, mais chama atenção pra si, e isso se perpetrará no conto até as últimas consequências.
O Poço, mais novo filme em cartaz na Netflix, poderia seguramente se encontrar entrincheirado nesse universo Kafkiano. Na obra em questão, somos situados em uma espécie de prisão, dotada de camadas, que uma vez por dia oferece aos carcereiros uma mesa vasta de alimentos, lógico tudo isso carrega um propósito maior enquanto mensagem. Os blocos prisionais literalmente seguem o formato de um poço, sendo possível inclusive que os aprisionados consigam vislumbrar aqueles que se encontram acima de si e observar alguns situados mais abaixo ainda. É em meio essa situação que somos apresentados a Goreng (Iván Massagué), personagem principal da trama, que ao que tudo indica optou passar por esse batismo de fogo por livre e espontânea vontade, mas ao se deparar com tal sistema, não concorda com a atual situação do “Poço” e suas condições e opta por se rebelar. Em determinado grau, Goreng se vê confrontado com a figura de Miharu (Alexandra Masangkay) uma enigmática mulher que trafega de camada em camada prisional atrás de sua suposta criança, criança essa que por sua vez se encontra perdida em algum pavimento. Eis aí o estalo da insurgência que acompanharemos.
O filme tenta traçar nesse universo distópico , tudo aquilo pelo qual o mundo e os seres humanos têm de pior ao se verem confrontados em situações limite e degradantes, questões que vão do egoísmo à avareza, perpassando a selvageria até ensejar em momentos escatológicos. O grande problema é que à obra não respira enquanto linguagem cinematográfica, não sabe delimitar ou salientar ao certo os pontos que propõe e os problemas surgem aí. O filme por vezes é didático em excesso (subestimando o público) e omissivo quando deveria ser claro. O tom se perde completamente, mesmo quando se pode vislumbrar um grande potencial no material em questão. O célebre diretor francês Robert Bresson em seu livro Notas de um Cinematógrifo salienta a seguinte questão sobre o ato de fazer Cinema: As Imagens, os sons tornam o real perceptível por um instante: ao traduzir o vento invisível através da água que ele esculpe passando. Infelizmente O Poço passa longe disso, não que tal proposição deva ser encarada como uma verdade única, porém, o filme é totalmente desprovido de sensibilidade no trato dos temas que propõe, e tal sensibilidade ao qual me refiro, não se dá meramente no campo estético.
Tomo por exemplo elucidativo um curta-metragem do diretor canadense Dennis Villeneuve intitulado Próximo Piso, que dialoga com os mesmos temas, de uma forma totalmente diferente em termos cinematográficos, conseguindo em meros 11 minutos adentrar de maneira bem mais feroz no âmago do debate que O Poço suscita.
Infelizmente, ao fim da mais nova produção da Netflix, a impressão que fica entalada na garganta é de que a ideia do filme era bastante promissora, enquanto a execução por sua vez deixa muito a desejar. Ainda assim, ressalto que o filme é válido enquanto experiência e seu caráter insurgente deve ser levado em consideração por quem se aventurar vê-lo, afinal, em um universo que clama dia a dia por empatia, o homem segue sendo o lobo do homem.
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Texto de autoria de Tiago Lopes.
https://www.youtube.com/watch?v=IKoURpr85pI