Um Homem Entre Gigantes — Concussion em inglês, em uma das raras vezes onde a inventiva tradução do título no Brasil acerta — conta a história do genial neuropatologista forense nigeriano Dr. Bennet Ifeakandu Omalu e o dia em que se deparou com uma morte misteriosa e sem muitas explicações, e viu se imbuído do espírito científico da ética na busca pela verdade e compreensão. Trata-se da morte de um famoso jogador de futebol americano pelo Pittsburgh Steelers Mike Webster, morto em 2002 devido a um ataque cardíaco e sofrendo sintomas de depressão, esquizofrenia e Alzheimer, apesar de tomografias não apresentarem nenhum indícios de tais transtornos, e rejeitado pela família, incapaz de lidar com a dificuldade de ter um homem de quase 2 metros e mais de 100 kg sem controle de si.
Morta no plantão de Dr. Omalu, as características da vítima lhe chamaram atenção, e desta forma decidiu bancar do próprio bolso exames do cérebro do astro, chegando a conclusão, a partir de insights sobre casos de doenças semelhantes no boxe, de que as repetidas pancadas na cabeça chacoalhando o cérebro geram traumas internos que liberam proteínas tóxicas no cérebro capazes de deteriorarem-no de dentro para fora, fazendo com que a mente da pessoa definhe. Apesar das represálias e falta de entendimento do corpo médico da cidade, Dr Omalu submeteu os resultados a revistas científicas e batizou sua descoberta de ETC, ou Encefalopatia Traumática Crônica, transtorno que levou à morte de outros grandes astros do esporte, muitos deles por suicídio devido a confusão mental. Estima-se que um jogador de futebol americano da defesa leve cerca de 70 mil pancadas na cabeça ao longo dos anos com uma intensidade duas vezes maior do que o suficiente para que uma pessoa sofra uma concussão. É um trauma físico análogo a ser submetido a 25 mil batidas de carro ao longo da vida, de acordo com resultados publicados pela Universidade de Oklahoma.
Dr. Omalu formou-se em medicina na Nigéria, epidemiologia na Universidade de Washington, uma série de mestrados em saúde e MBA’s e hoje é professor na Universidade da Califórnia. Mas Dr Omalu é um homem excêntrico. Extremamente sério, comedido e educado, falava com seus pacientes por tratá-los com o respeito devido e por sua formação católica.
Uma preocupação central no filme era com a acurácia científica e histórica do caso, apelando para ferramentas narrativas fictícias em casos bem específicos, como o colega de trabalho Dr. Omalu, inserido na trama para representar as vozes da cidade que se opuseram à autópsia do astro Mike Webster. Devido a essas vozes e a falta de orçamento, Dr. Omalu teve de pagar os exames, que geraram os resultados da autópsia de seu paciente zero, valor que chegou alcançar os U$ 100 mil. A NFL tentou descriminá-lo e descredenciar sua formação e resultados em razão do impacto que isso poderia provocar no esporte.
Will Smith entrega-se ao papel com grande propriedade — já tirando o elefante da sala, sim, ele merecia sua indicação no Oscar de 2016—, inserindo um olhar gentil, mas levemente oprimido pelo gigantismo do que o cerca, trazendo um sotaque bem ensaiado e que demonstra a óbvia convivência com o verdadeiro Dr. Omalu, embora todo o poder de sua interpretação não entre em ressonância com seu porte físico. Sua interpretação vai crescendo conforme se opõe à ignorância e se estabelece como alguém que merece o devido respeito por tudo que é, sem se abalar com a insistência das pessoas de não o reconhecerem como médico. O papel também foi aparentemente o responsável por conectar Will Smith com suas raízes africanas e ver a dificuldade que as pessoas de sua etnia enfrentam no dia a dia para conseguir demonstrar-se capazes, apesar de sua origem. Sua tristeza vem da incompreensão da inversão de importância das coisas e sentimento de engano quanto ao sonho americano.
Não é filme sobre o futebol, embora faça um meio-campo evitando colocar o amado esporte como vilão, mas é basicamente um filme sobre força. Ao iniciar o filme com um belo discurso de Mike Webster, o diretor Peter Landesman demonstra reconhecer o domínio transformador e motivador do esporte, bem como sua beleza. Mas através da narrativa trata de demonstrar um outro poder que contrasta com o apresentado em campo e que não vem da luta corporal. O poder em questão é da busca do entendimento da realidade e a verdade. Dissolver os problemas, dirimir as dificuldades, compreender os processos e apresentar ao mundo por que este é o dever de quem pode fazê-lo e o direito de quem não sofre por não saber. O poder da ciência contra a ignorância dos negócios é sempre exaltado de forma apaixonada, principalmente em comparações entre os desmandes da NFL (Liga Nacional de Futebol Americano) com as atitudes da indústria do cigarro durante épocas anteriores.
As grandes dificuldades do filme, no entanto, surgem na direção, fotografia e edição. A primeira não foi capaz de livrar-se de diálogos excessivamente expositivos para descrever o que os grandes atores em cena poderiam realizar muito bem, e nem sente vergonha de repeti-los, imaginando, talvez, que o assunto seja muito complexo. Em conjunto com a edição, não há esmero em dar algum tom ou ritmo em cenas mais intimistas, forçando cortes desnecessários e close-ups que só servem para oprimir e não aproximar. Nas transições de cena, principalmente naquelas que visam mostrar eventos simultâneos, não é claro que são acontecimentos ligados de alguma forma e deixam as cenas mais truncadas do que deveria. E se há um outro pecado é o fato de a cinematografia ser óbvia, e não se esmerar em criar quadros interessantes para a narrativa ou até mesmo bonitos. Por fim, Um Homem Entre Gigantes traz certa estranheza aos mais conhecedores do mundo do cinema ao trazer atores conhecidos em papéis que mal têm uma fala completa, deixando um suspense improdutivo sobre os atos daqueles personagens, sendo que na verdade estão apenas fazendo uma figuração de luxo mesmo.
É com certeza um filme necessário, tanto pela sua história quanto como mensagem de empoderamento do povo negro e do racionalismo no combate do poder irracional e pragmático das máquinas financeiras, algo necessário em tempos onde mineradoras e indústrias petrolíferas têm voz na negação de seus impactos. Todo esse conteúdo é capaz de fazer relevar com facilidade as duas horas de filme e revigorar a fé na verdade.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.