Enxergar o cinema em sua tridimensionalidade arte, meio de comunicação e indústria, não significa dizer ao mesmo tempo que esses vieses de análises funcionem exclusivamente de modo separado ou postular que cada uma dessas dimensões sejam homogêneas entre si.
Essa análise não só permitiria nos fazer ver o acúmulo de elementos para se pensar o cinema sob diferentes facetas, sejam elas sociais, políticas, ou meramente revolucionária sob um aspecto técnico cinematográfico, como também do caráter estratégico que esse cinema pode ter como ferramenta potente para o esclarecimento de seus espectadores. No caso em tela, é evidente que a intenção deste texto é dual, seja como o cinema funciona ou como elemento esclarecedor da situação da classe trabalhadora.
Assim, é importante pensar o cinema de cineastas como Chaplin, Eisenstein, Costa-Gavras e tantos outros como um processo de construção de cinema onde enxergava no espectador uma parte concreta de uma intervenção e ferramenta para mudança real da sociedade. Uma ótica desse universo de não mais pensar no artista como um criador inspirado, mas como um trabalhador a serviço de uma outra sociedade, que não mais despeja seus conhecimento a serviço do seu próprio eu, mas sob a ótica de construção de superação da sociedade atual, e também da própria forma de arte tradicional.
Dessa forma, retornamos ao trabalhador para analisarmos o cinema sob essa tridimensionalidade de elementos catalisadores de politização da luta de classes, e também do cinema como forma de superação da arte, posta hoje em favor de uma sociedade emancipadora. Por conta disso, me reuni ao amigo Filipe Pereira para a construção da lista abaixo envolvendo o cinema e o trabalhador.
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A Greve (Serguei Eisenstein, 1924) – Flávio Vieira
Serguei Eisenstein foi um dos primeiros cineastas a analisar o modo de construção artística aliado a função social de seu trabalho, obviamente, sempre utilizando o contexto do meio onde viveu,: a União Soviética pré e pós revolução, o que determinou o forte cunho político de toda sua obra. A Greve torna evidente a preocupação do cineasta com as questões operárias, a luta entre capital x trabalho, como também da própria cultura proletária e organização independente. Além disso, importante relembrar que Eisenstein foi pioneiro na linguagem, estética, montagem e teoria cinematográfica.
Dois Dias, Uma Noite (Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, 2014) – Filipe Pereira
O filme dos irmãos Dardenne trata prioritariamente sobre a questão da depressão, utilizando a personagem Sandra – magistralmente interpretada por uma propositalmente modificada Marion Cotillard – como maior exemplo dos malefícios da doença. No entanto, o background mostra o agravo e manifestação da doença após uma demissão, fruto da total insensibilidade de seu patrão que, como um barão industrial, corta-a do quadro de funcionários e divide aos empregados um bônus que serviria de resolução para a permanência de Sandra. Sua epopeia ao tentar modificar a situação é prodigiosa em mostra-la como uma párea. O modo como alguns é tratada se assemelha a de alguem com uma doença contagiosa, repulsa mais caracterizada pela demissão do que pela depressão. Ao final, Sandra nota o ardil de seu antigo superior, mas não o culpa, ao contrário, utiliza o fato como trampolim para sair da letargia mental em que se encontrava, finalmente desenvolvendo uma expressão que não fosse de total miséria existencial. Símbolo da vitória não só sobre sua condição, mas também a quebra do paradigma de “escravidão assalariada”.
O Corte (Costa-Gavras, 2005) – Flávio Vieira
Costa-Gavras é conhecido pelo seu trabalho ao retratar temas pungentes em um cinema mais político, principalmente ligado a questões envolvendo a luta de classes. Em O Corte isso fica mais uma vez evidente. Sempre preciso, e por vezes impiedoso, Gavras não poupa o espectador e mostra o impacto da perda de um emprego na sociedade atual e o drama familiar decorrente disso. Está tudo ali: perda de identidade, baixa auto-estima, impessoalidade, desespero, decadência financeira, o efeito desagregador no seio familiar, como também a opressão de uma entrevista de emprego e a atmosfera de competitividade reinante num ambiente corporativo.
O Duplo (Richard Ayoade, 2013) – Filipe Pereira
Baseado no romance de Dostoievski, o filme de Richard Ayoade apresenta um micro universo sombrio e mecânico, semelhante as distopias vistas em Brazil e em outros filmes de Terry Gilliam. O cenário é uma tela em branco para a narração das desventuras de Simon (Jesse Eisenberg) que vê sua vaga no trabalho ser aos poucos tomadas por uma pessoa cujas expressões são idênticas as suas. A citada contra parte, chamada de James, rouba benefícios, atas e a confiança de seu opressor chefe, utilizando seus esforços para mostrar o quão obsoleto e descartável Simon é para a vida e, consequentemente, para o mercado, fazendo dele uma peça completamente desimportante e substituível da engrenagem, encerrando a profecia de mercantilização da vida humana, com o capital tratando o homem como o ser diminuto, cuja proposição proveio dele mesmo.
Roger e Eu (Michael Moore, 1989) – Flávio Vieira
Nos idos de 1989, o forte tom de denúncia e crítica à sociedade moderna, com toques refinados de sarcasmo já eram presentes no primeiro trabalho do polêmico Michael Moore, Roger & Eu. O documentário traz Moore em sua saga ao tentar dialogar com Roger Smith, presidente da General Motors, responsável pelo fechamento de onze indústrias da GM, o que acarretou em mais de 30.000 desempregados na cidade natal de Moore, Flint. O documentarista é incisivo ao ilustrar a perversidade inerente à logica incessante da busca pelo lucro, a concentração de riqueza nas mãos de um pequeno grupo e as desigualdades sociais que se alastram ao redor do globo.
O ABC da Greve (Leon Hirszman, 1990) – Filipe Pereira
Acompanhando as greves ocorridas no estado de São Paulo pelos idos de 1979, O ABC da Greve reverberava as reclamações da classe operária por maiores direitos trabalhistas, apoiando veemente o fortalecimento dos sindicatos. A experiência do diretor e roteirista Leon Hirzsman em dramas passados nos anos pós chumbo, como em Eles Não Usam Black Tie já mostrava a indignação com o modo como o Regime Militar tratava o proletariado, fazendo deste documentário uma obra pessoal para o cineasta. Lançado postumamente, o filme serve para quebrar o silêncio que os militares tentavam impor aos líderes do movimento que propunham os mesmo direitos que os poderosos sempre tiveram, comumente associados a opressão daqueles que causaram medo e terror aos mais necessitados. O grito e o canto de revolta merece ser mais propagado dado que o filme é completamente subestimado pela critica de cinema brasileira, mesmo hoje.
Os Companheiros (Mario Monicelli, 1963) – Flávio Vieira
Mario Monicelli, cineasta italiano conhecido pelo O Incrível Exército de Brancaleone (1966), abordou a questão sindical no longa metragem, Os Companheiros, três anos antes de sua produção mais conhecida. O diretor transporta sua história para um grande centro industrial da Europa do início do século XX, onde trabalhadores se submetem a uma extenuante jornada de trabalho de 14 horas. A trama se desenvolve após um trabalhador fatigado se descuidar no maquinário utilizado para seu labor e perder sua mão. O ponto de ruptura se dá com a chegada de um professor na cidade, interpretado pelo grande Marcelo Mastroiani, que passa a formar um processo de mobilização e organização desses trabalhadores. Os Companheiros é um filme que nos ganha pela simplicidade, mas não deixa de nos mostrar a dureza decorrente dessas relações de trabalho e a luta por uma vida digna e uma sociedade mais justa.
Cabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984) – Filipe Pereira
Interrompido durante a instauração do Golpe Militar, Cabra Marcado Para Morrer é um filme simbólico, não só sobre as tratativas da repressão aos mais pobres, pelo braço duro do estado, como também pela disseminação do ódio aos homens do campo. A sabotagem que Eduardo Coutinho acompanha famílias atacadas pelos membros do alto escalão do exército e servem de exemplo do montante de ações que dividiam os membros do campesinato, bem como a perseguição aos formadores dessas ligas equivalente aos sindicatos que habitavam o urbano. Talvez a obra mais conhecida da filmografia de Coutinho, Cabra Marcado exibe o melancólico retrato dos campestres, impotentes diante dos fomentadores do Regime, excluídos e assassinados como se fossem animais indo para o abate.
As Neves do Kilimanjaro (Robert Guédiguian, 2011)
Robert Guédiguian, cineasta francês de origem armênia, utiliza o poema Os Pobres, de Victor Hugo, como ponto central de As Neves do Kilimanjaro. A trama nos apresenta Michel, um sindicalista que acaba demitido por decidir sortear seu nome em uma lista de cortes, por se recusar a receber um tratamento especial pela sua posição junto ao sindicato. Como se isso não fosse o bastante, ao celebrar seu aniversário de casamento ao lado de sua esposa, as personagens são assaltadas e perdem um grande valor em dinheiro, além de uma viagem para Tanzânia que receberam como presente. O filme discute as questões classistas envolvidas nas relações cotidianas e a violência decorrente delas. Apesar de por vezes cruzar a linha entre o moralismo e a moralidade, o filme é um belo exemplo de que as relações sociais são elementos catalisadores de transformações maiores de uma sociedade.
Como Era Verde Meu Vale (John Ford, 1941) – Filipe Pereira
Clássico do cinema norte-americano, Como Era Verde Meu Vale é um dos primeiros filmes da fase áurea do cinema de John Ford. Não à toa, pois usa história simples para apontar as tristes condições do trabalhador popular. Utilizando a ruína da família Morgan, mesmo diante da total dedicação de cada um dos membros. A película mostra uma triste epopeia pela região interiorana dos Estados Unidos, onde os membros do clã se voluntariam para trabalhos que mal pagam seus alimentos. A complexidade dos dramas e sentimentos mostrados em tela são apresentados de modo simples, mas a reflexão pós cenas não é fácil por tratar das dificuldades e dos sonhos de quem uma população que ajudou a construir a nação. Também serve de fonte para discussões mais abrangentes de como a exploração da mais valia só faz aumentar o espectro da miséria financeira e, consequentemente, de alma e espirito também.
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Concluo com o clássico poema de Vinícius de Moraes, O Operário em Construção:
Leia Mais: O Cinema e o Trabalhador.
Parabéns, meu camarada… pena que a sobrevivência (leia-se: capital) abafa – no berro – a tua produção!
Paulão, o senhor por aqui?
Achou este humilde bloguinho… hahaha