Neste clássico da literatura contemporânea, publicado originalmente em 1986, o prêmio Nobel J.M. Coetzee reinventa a história de Robinson Crusoé.
O autor desconstrói a história de Robinson Crusoé, que deixa de ser o narrador-protagonista, colocando a voz narrativa na figura de Susan Barton, náufraga que sobrevive a um motim no navio em que viajava e que acaba “aportando” na ilha de Cruso. Assim como F. Scott Fistzgerald já fizera com Nick Carraway em O grande Gatsby, deixando que o vizinho do herói conte a história de Jay Gatsby, Coetzee deixa a cargo de uma “coadjuvante” a narração das aventuras/desventuras de Crusoé.
O livro é narrado em primeira pessoa por Susan. E o interessante é que a voz narrativa tem um tom de contador de histórias, com digressões que (felizmente) não atrapalham e se encaixam perfeitamente no contexto. É quase como uma quebra da quarta parede (se o livro fosse um filme). Há vários apartes, como se o narrador estivesse mesmo conversando com o leitor, pedindo permissão para algo ou avisando que falará disso ou daquilo mais tarde.
“Os olhos do estranho eram verdes, o cabelo queimado tinha adquirido uma cor de palha. Julguei que teria sessenta anos. Usava (permita que eu dê minha descrição completa dele) um colete, calção até debaixo dos joelhos, como se veem marinheiros, usando no Tâmisa, e um boné alto que subia em cone, tudo feito de peles de animais trançadas, com os pelos do lado de fora, e um par de sandálias resistentes.”
(pag.10)
Além disso, reforçando a ideia de “contação de história”, o autor usa uma notação toda própria – todos os parágrafos são abertos com aspas, que não são fechadas ao final dele. Na segunda parte do livro, que está em formato de diário, as aspas se fecham ao final de cada dia.
Aproveitando a deixa, na primeira parte Susan narra sua chegada à ilha de Cruso, a estadia e o resgate. Na segunda parte, narra sua busca por alguém que escreva sua história, na verdade, a história de Cruso e de Sexta-feira. Na terceira e quarta parte acompanhamos o encontro de Susan com seu autor.
E desde o início, através de Susan, o autor brinca com as palavras, com seu uso, com seus significados, com sua utilidade:
“Minha primeira ideia foi que Sexta-feira era como um cachorro que obedece a um único dono, mas não era assim. ‘Firewood, madeira para fogo, lenha, é a palavra que ensinei a ele’, disse Cruso. ‘Wood, madeira, ele não sabe.’ Achei estranho que Sexta-feira não entendesse que firewood era uma espécia de madeira, assim como pinewood, pinho, era uma espécie de madeira, ou poplarwood, madeira de choupo, mas deixei passar. Só depois que comemos, quando estávemos sentados olhando as estrelas, como passara a ser nosso costume, foi que falei de novo.
‘Quantas palavras em inglês Sexta-feira conhece?’, perguntei.
‘As necessárias’, Cruso respondeu. ‘Aqui não é a Inglaterra, não precisamos de muitas palavras.'”
(pag.22)
Esse quase desleixo de Cruso com as palavras já se manifestara quando Susan o questiona sobre a manutenção de um diário, um registro do que ocorrera a ele a e Sexta-feira. Enquanto ela julga de suma importância registrar os fatos para a posteridade – fossem ou não resgatados – a Cruso interessa apenas manter-se ocupado com seus terraços e paredes, que, segundo ele, são as únicas coisas que quer deixar para a posteridade.
Vale destacar que a “brincadeira” com as palavras começa já no título do livro. Até se ler a sinopse, o título não faz muito sentido. Em inglês, “foe” quer dizer “adversário”. Porém – pensei comigo – se o significado do título fosse unicamente esse, teria sido traduzido, certo? Por outro lado, se a história é uma versão da aventura de Robinson Crusoé, nada mais natural que Coetzee brincar com as palavras e usar como título uma versão reduzida do nome do autor do original, Daniel Defoe. Por si só, isso já bastaria – ao menos para mim seria um significado totalmente satisfatório. Porém, Coetzee vai além. Quando Susan procura um escritor para escrever sua história, o “escolhido” é um certo sr. Foe:
“O senhor me considera, sr. Foe, como sra. Cruso ou como uma aventureira ousada? Pense como pensar, fui eu que deitei na cama de Cruso e fechei os olhos dele, como sou eu que disponho de tudo o que Cruso deixa nesta vida, que é a história de sua ilha.”
(pag.43) – grifo meu
E é nessa parte do livro, em que Susan escreve cartas ao sr. Foe e descreve sua busca pelo autor, que Coetzee coloca na voz da narradora uma série de questionamentos sobre a escrita, sobre criatividade, sobre como contar histórias, sobre a arte de entreter o leitor:
“Escrevo minhas cartas, selo, deposito-as na caixa. Um dia, quando formos embora, o senhor vai abri-las e passar os olhos por elas. ‘Melhor seria se fossem só Cruso e Sexta-feira’, vai murmurar consigo mesmo: ‘Melhor sem a mulher’. No entanto, onde o senhor estaria sem a mulher? Cruso o teria procurado por vontade própria? O senhor poderia inventar Cruso, Sexta-feira e a ilha com suas pulgas, macacos e lagartos? Acho que não. Muitos poderes o senhor tem, mas invenção não é um deles.”
(pag.66)
“Escrever se revela um trabalho lento. Depois da agitação do motim e da morte do capitão português, depois que conheci Cruso e vim saber um pouco da vida que ele leva, o que resta a dizer? Havia muito pouco desejo em Cruso e Sexta-feira; muito pouco desejo de escapar, muito pouco desejo por uma nova vida. Sem desejo como é possível fazer uma história?”
(pag. 80)
Seria leviano afirmar que Foe é meramente uma releitura da história de Robinson Crusoé feita por Coetzee. A obra é muito mais que isso. Coetzee faz dessa releitura um estopim para analisar o uso da linguagem – principalmente o uso da linguagem para se contar uma história.
–
Texto de autoria de Cristine Tellier.