Não foram poucas as opiniões favoráveis que ouvi sobre Haruki Murakami, e, tendo em vista que ele é um dos nomes mais conhecidos da literatura contemporânea, resolvi encarar um livro dele. Por que não começar com um que leva no título outro nome de peso?
Foi assim que cheguei a Kafka à Beira Mar.
É difícil situar o autor dentro de uma “tradição” mais ampla, visto que não conheço praticamente nada sobre literatura nipônica, mas o que é possível perceber é que existe um diálogo bastante interessante dele com outros elementos da cultura japonesa que gozam de bastante difusão no ocidente, digamos assim, como, por exemplo, os animes, o ritmo frenético de Tóquio, algumas lendas e mitologias, a alta-tecnologia etc. Existem determinados momentos do livro em que você nitidamente enxerga ambientes, lugares e até mesmo personagens de animes que você já assistiu ou histórias que já ouviu sobre o Japão, visto que essa é, em grande parte, a “imagem” relativamente disseminada do oriente.
O livro é contado sob duas perspectivas: a do jovem Kafka Tamura e a do velho Satoru Nakata. O primeiro é um jovem que resolveu sair de casa por conta do relacionamento atribulado que mantinha com o pai, e, de alguma forma, buscando sua mãe e irmã, que ele desconhece. O segundo, é um velho com problemas de retardamento que conversa com gatos e tem estranhos hábitos e concepções acerca da realidade cuja busca não está clara até o momento em que ele a veja, ou seja, ele não tem um norte definido.
Murakami consegue criar personagens carismáticos, de modo que a alternância de histórias sendo contadas (os capítulos vão alternando as histórias de um e outro) deixe a narrativa sempre com alguma coisa acontecendo, uma tensão ou aventura por ser deslindada. Em um capítulo você está andando sem rumo com o jovem Kafka Tamura e sua rotina austera de exercícios, autocontrole e racionamento de recursos, e no outro está às voltas com o velho Nakata e suas extravagâncias um tanto non-sense (aliás, o diálogo dele com os gatos é uma das melhores partes do livro).
O non-sense, aliás, permeia todo o Kafka à Beira Mar. Se várias situações podem ser localizadas e amarradas dentro de uma lógica, diversas outras ficam esperando seu lugar nessa cadeia, sem que, contudo, ganhem relação mais clara ou direta com o corpo da obra. As duas tramas parecem querer se entrelaçar ou se tocar a todo o instante, mas, no final das contas, encontrar analogia entre as situações fica mais por conta do leitor mesmo.
Algo que deve ser ressaltado (e que eu espero que seja recorrente nos outros livros de Murakami) são os comentários que ele vai fazendo ao longo da obra a respeito de arte, música, literatura, cinema etc. São formas de despertar a curiosidade para quem não conhece e proporcionar o contato com opiniões do autor para quem já conhece o que ele analisa. Assim, em Kafka à Beira Mar, temos opiniões sobre Na Colônia Penal, The Archiduque Trio, The 400 Blows, literatura japonesa e assim por diante.
Apesar do contato das duas tramas não ser tão longo ou tão direto, ambas se relacionam com jornadas pessoais, e versam sobre a necessidade de deixar “zonas de conforto” (para usar essa expressão tão disseminada) e fazer algo fora do comum, fugir dos padrões, apelar para o imprevisível e deixar um pouco de lado a sisudez e a frieza do mundo “confortável, porém tediosamente padronizado”. É assim, por exemplo, que Hoshino, um caminhoneiro que deixa de lado sua vida para seguir Nakata em sua busca amalucada, percebe um novo sentido para sua existência, concebe novos objetivos e se sente mais vivo e feliz do que quando somente dirigia seu caminhão e obedecia a rotinas e procedimentos repetitivos e previsíveis.
Murakami usa ainda de porções de fantasia para dar expressão a essa ânsia por algo além do ordinário. Parece haver algo sobrenatural borbulhando por baixo da realidade natural, algo fantasioso, meio místico, com raízes mitológicas antigas, épicas, esperando por serem desenredadas por aqueles que ousarem deixar o comum e embarcar no incomum. Como o Wilson disse lá no fórum, Murakami está interessado na criação de mitos modernos, ou ao menos ambientados no mundo contemporâneo. Isso pode ser percebido tanto nas passagens dignas de realismo mágico (ou ‘absurdo mágico’, como o Tiago e o Luciano sugeriram) quanto nas “entidades” que vagam pela história, como Johnnie Walker em pessoa (sim, o da bebida mesmo) e o Colonel Sanders, o velho bigodudo da rede de fast foods, por exemplo.
Parece haver um quê de “mágico”, de incomum ou de transcendental no que nos cerca, Murakami quis tornar isso mais visível do que estamos acostumados a enxergar.
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Texto de autoria de Lucas Deschain.
Por causa da sua resenha estou angustiada para ler Kafka à Beira Mar 🙂
Pode ir tranquila que tenho certeza que irás gostar. É um belo livro, estou na fissura para poder dedicar mais tempo a ler Murakami.
Lucas,
Você leu mais alguma coisa do Muramaki? Fiquei bastante curioso para conferir sua obra. Já comprei meu kafka à beira mar. Valeu pela dica.
@Júlio
eu li mais dois livros: ‘1Q84’ (que sai ano que vem aqui no Brasil) e ‘Do que eu falo quando falo de corrida’. São ambos bem legais, mas acho que o ‘Kafka à Beira-Mar’ ainda é bem superior. Ele tem uma porção de livros traduzidos, aqui e em inglês. Se você consegue ler em inglês aí tem quase a obra completa, eu acho, e é bem acessível, até porque essa é uma das marcas do Murakami, não rebuscar demais o texto.
Sem exageros, um dos melhores livros que tive a oportunidade de ler. Diálogos, acontecimentos, personagens, locais onde se passa a história, são todos fantásticos. Sem falar dos mistérios sem solução, que tornam o livro mais especial.
Kafka à Beira-Mar também foi minha primeira leitura de Haruki Murakami. Eu desconhecia o autor até me deparar com uma imagem interessante de um rapaz segurando um guarda chuva e no chão, ao invés de gotas de chuvas, eram peixes mortos ensanguentados e, no meio disso tudo, um gato preto. Desde então estou viciada… terminei Norwegian Wood e agora estou em 1Q84.
Parabéns pelo artigo!