“Adultos seguem caminhos. Crianças exploram.”
Não tem coisa mais fácil, e descartável, que um mero escapismo infantil em forma de livro. A série nacional Vaga-Lume tornou-se célebre justamente por resgatar a aura das aventuras infanto-juvenis clássicas com o dobro de vida e perspicácia que a maioria das histórias para crianças tanto demonstram, publicadas ano após ano, quase subestimando a inteligência dos pequeninos. Já para Neil Gaiman, criador de Coraline e da obra-prima adulta Sandman, chega a ser uma terapia estimulante pôr pra fora sua criança interior com a sabedoria de um escritor sapiente, tecendo epopeias profundas e reflexivas com a intenção principal de reproduzir, o mais fiel possível, a experiência de ser criança e de encarar (ou não) os nossos medos sem entender, de verdade, nada do que está acontecendo. Quando o mundo é o nosso quintal, tudo é possível nele, tudo é fértil, enquanto somos tão felizes de brincadeira, em brincadeira.
O que impressiona, mesmo, é a habilidade de Gaiman em levar a sério, na medida perfeita, fábulas tão doces quanto arrepiantes, e que provavelmente toda avó conta a seu neto antes de dormir, ao instigar seus sonhos mais secretos. Reinações estas muito parecidas com a deste O Oceano no Fim do Caminho, narrado em primeira pessoa com um forte clima de confissões de diário aberto, e sem o nome do personagem principal a nos guiar pela aventura que viveu, aos sete anos de idade. Aqui, este (para sempre atormentado pela sua infância) retorna a sua cidade natal apenas para ver como tudo está, mais de vinte anos depois de ter lutado contra todo tipo de força do mal que uma criança pode imaginar, e ainda, ter conhecido a doce e poderosa Lettie, na fazenda de sua família. Sem saber que o destino os lançaria a inúmeras armadilhas, a dupla passa a ser atormentada por monstros do submundo recém invocados, após um homem se matar nas redondezas, com eles farejando a morte e sendo atraídos por ela.
Há um lago na fazenda de Lettie e sua família, e nele há ondas oceânicas que nos levam a reinos muito distantes! Um portal legítimo, cujos mistérios vão muito além da capacidade de um garoto de sete aninhos entender, e como ele é a voz da jornada, Neil Gaiman cozinha esses mistérios através do olhar cândido e inocente do garoto que embarca com a sua melhor amiga num mar de fantasia que, talvez, só possa ser vivenciado e desfrutado mesmo pelas virtudes dos infantes, e dos de bom coração. Há uma frase dita por Gandalf no livro O Hobbit, de J.R.R. Tolkien, que ilustra perfeitamente boa parte do trabalho de Gaiman: “São os simples atos de bondade e amor do dia a dia, que mantém a escuridão afastada.” Em certo momento, a história incorpora essa verdade nos grudando a ela, e mesmo com criaturas das trevas despertadas naquela pacata cidade americana, longe de tudo, é a força da amizade e de uma família, no meio do nada, que impede as várias formas do mal de eclipsar a luz, e governar o lado de cá desse “oceano” em forma de lago.
Mas e quando os problemas racham as nossas paredes, se infiltram e conseguem invadir a nossa casa, personificados numa governanta que seduz a todos apenas para vigiar, bem de perto, aquele que impede o triunfo do mal? Eis que surge então a sinistra Ursula Monkton, mulher sem passado e que age como elemento de destruição da normalidade, infernizando ainda mais a nossa dupla de aventureiros. O que poderia ser apenas uma alegoria sobre o terror de uma madrasta cruel morando com você, e ver seu pai enfeitiçado por ela indo contra os seus filhos, isso que poderia ser um longo episódio de Coragem, O Cão Covarde vira, nas mãos magistrais de Gaiman, um exercício literário da mais pura e nobre fantasia que surgiu nos anos 2010. Do início ao término (que nunca desejamos chegar), O Oceano no Fim do Caminho é, além de uma ode à imaginação infantil, colorindo e agitando o mundo de boletos e crises dos adultos, uma impagável homenagem a própria obra geral, super criativa e fabulesca, de Gaiman.
Obras assim nos transportam para longe, muitas vezes para dentro de nós, isso devido sobretudo a sua atmosfera arquitetada em detalhes, e um suspense bom demais para resistir a imersão. Assim como em O Livro do Cemitério, Gaiman consegue nos encantar com a facilidade do vento, e a leveza de um conto de Roald Dahl mais sinistro, como se os Oompa-Loompas tramassem agora um plano bizarro para comandar a fábrica de Willy Wonka, ou se Matilda decidisse se vingar pra valer da diretora do colégio. Tudo na dinâmica de um pequeno grande conto, e com aquele sabor de infância para o público mais crescidinho que, no fundo, sente saudades de embarcar em aventuras epopeicas como as de Lettie e seu amiguinho, um moleque normal que cai de balão nesse mundo de dimensões paralelas e criaturas inacreditáveis, capazes de engolir a nossa realidade – literalmente. Mas vamos ao que interessa: e se Gaiman escrevesse Harry Potter? Esse é o mundo perfeito onde eu quero viver, explorar, e nunca mais voltar dele.