Os romances atuais, em média, apequenaram-se de extensão. Seja por questões de mercado, preço do livro, pouca atenção dos leitores em acompanhar uma narrativa grande ou por a história, em si, não seduzir por muito tempo, o certo é que as prateleiras das livrarias contam com pouquíssimos lançamentos que ultrapassam as duzentas páginas. Escrever longos romances é sempre um desafio complexo. Entretanto, quando o escritor consegue vencer todas essas barreiras e, ao final, entrega uma história encantadora, é como se o leitor encontrasse um tesouro a ser lembrado.
O Tango da Velha Guarda (Editora Record), do espanhol Arturo Pérez-Reverte, do primor de suas quase 400 páginas, é um tesouro literário. Dos conflitos ao ambiente e os personagens, o livro seduz pelo seu complexo vigor. Primeiro, a história. Um trio amoroso: o famoso compositor europeu Armando de Troeye, sua esposa Mecha Inzunza e o dançarino argentino de tango Max Costa. A relação entre o casal é de posse, Troeye alimenta seu ego artístico com a beleza estonteante de Inzunza; mas ela parece ser compelida conscientemente para Max, seja pelos dotes sedutores do dançarino, seja para tentar abalar o pedestal onde o marido se encontra. A indefinição dessas relações é uma das armas do autor para manter a atenção do leitor.
O drama entre o trio de personagens funciona muito bem porque Pérez-Reverte trabalha de forma minuciosa as descrições físicas e psicológicas dos personagens. De fato, o escritor faz com que conheçamos o trio pelas suas manias, obsessões, trejeitos, a tal ponto que, durante os diálogos, podemos entender o tom de voz utilizado ou as intenções por trás das ações dos personagens. É um uso muito bem feito da regra de escrita “Narre, não conte”. Ou seja, ao invés de o escritor despachar uma dúzia de adjetivos sobre seus personagens, os encontramos em seu ambiente comum e as descrições sobre suas atitudes nos entregam informações das mais importantes no desenlace da trama.
Outro fator de grande riqueza no livro é o tempo cronológico da narrativa. Trata-se de uma história contada em três épocas diferentes: a primeira é na Buenos Aires de 1928; depois Nice, França, em 1937, no ambiente conturbado e beligerante que antecede a Segunda Guerra Mundial; e a terceira parte se passa em Sorento, Itália, em 1960. A narração ultrapassa essas três épocas com ritmo, concisão e imersão. Não há um desgaste ou espaços que rasguem a lógica interna da história, ao contrário, Pérez-Reverte consegue passar ao leitor uma pluralidade de sentimentos ligados aos lugares visitados pela narrativa. A própria relação com o tango, que por vezes se mescla ao modo de agir de Max, sensual, trágico e ambicioso, por vezes é uma espécie de música interna que impulsiona os acontecimentos. E afinal, como contar uma história de amor sem mencionar o tango?
E o mais importante: a trama mostra-se ambiciosa e atinge seus objetivos. Autores megalomaníacos por vezes têm dificuldades com o desfecho de seus livros (vide Stephen King e George R. R. Martin, por exemplo), mas em O Tango da Velha Guarda, temos uma conclusão concisa que contrasta e agiganta-se por conta das pretensões anteriores. Uma solução sóbria e eficaz que finaliza bem a leitura.
Livro dos mais deliciosos que li, me lembrou outra obra-prima Shalimar, o Equilibrista, do também ambicioso literariamente Salman Rushdie. Histórias distintas, mas livros irmãos. Carregam uma bonança vocabular, preciosidades descritivas, personagens bem delimitados, palpitantes, e uma sedução cadenciada que perdura, perdura, perdura por todas as páginas (“Shalimar” tem outras 400 páginas).
O romance de Pérez-Reverte é vivificante. Desperta (ou redesperta) o prazer pela leitura lenta, o estilo conciso, os personagens verticais, e nos lembra a riqueza e magia que a boa literatura produz.
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Texto de autoria de José Fontenele.