Em Kings of Cool, Don Winslow contou como Ben e Chon começaram a produzir a melhor maconha do sul da Califórnia e assim, aos vinte cinco anos, tornaram-se milionários e inventores de seu próprio modelo de negócios. O livro não era só uma explicação da origem dos personagens, mas uma história da rede que formava o comércio de drogas na Califórnia, desde o início, com hippies dos anos 70, a chegada dos carteis mexicanos.
Selvagens é o livro para o qual a prequel foi escrita. Assim, ao começar, o que o leitor encontra são dois jovens misteriosos e a menina que convive com eles. Ben é pacífico, essencialmente anti-violência, budista hippie de shopping center e tenta expurgar sua culpa por flertar com o mundo do crime investido boa parte do dinheiro em ONGs para construção de poços no Myanmar. Chon é um veterano da guerra do Afeganistão que não tem a menor fé na decência básica de seres humanos e portanto acredita que a única maneira de lidar com eles é a violência.
O. é a amiga, eventual ajudante e namorada conjunta deles. Ela tem cabelos azuis, tatuagens, um cartão de crédito ilimitado e sabe que sua incapacidade de se comprometer com qualquer coisa é um sintoma de uma tristeza profunda, mas não quer pensar nisso agora.
O maior mérito de Winslow é sua mistura de sensibilidade e cinismo: ao mesmo tempo que ele compreende seus personagens e retrata-os com dificuldades bastante reais e humanas, ele não enxerga saída para tudo aquilo. Selvagens é, mais do que tudo, um livro onde não há saída, embora o leitor, e os protagonistas, queiram desesperadamente encontrar uma.
A história começa quando advogados do cartel da Baja Califórnia (região norte do México que faz fronteira com a Califórnia) propõe a Ben e Chon que vendam seu negócio para eles, mantenham-se no comando da produção, afinal apenas eles conhecem o segredo da erva que vendem e tem a confiança de seus clientes, e recebam uma porcentagem mensal. Propor não é exatamente a palavra correta, mas, ainda assim, os meninos recusam. E ao recusar declaram uma guerra com uma estrutura gigantesca de poder e conexões. Selvagens é, de certa forma, a história de idealistas de um sistema mais pessoal, seguro, limpo, contra uma máquina lucrativa.
O primeiro movimento do cartel da Baja nessa guerra é sequestrar O. e enviar aos amigos um vídeo de cabeças de inimigos sendo cortadas com um aviso: eles tem um prazo, ou isso acontecerá com ela. O livro é um relato da corrida de Ben e Chon para salva-la, dos diversos planos e reviravoltas e dos diversos persongens envolvidos. A escrita de Winslow é tensa, rápida, repleta de frases breves e parágrafos curtos que dão a narrativa um ritmo acelerado e criam no leitor a tensão e expectativas necessários para a história.
Da mesma forma como seu livro se situa em algum lugar entre simples romance policial e reflexão amarga a respeito do estado das coisas, sua linguagem também é uma mistura de experimentalismo e coloquialidade. Winslow é sem dúvidas experimental, sua narrativa se interrompe e um pedaço de roteiro entra no meio, ele brinca com a diagramação e povoa páginas inteiras com apenas uma palavra. Mas sua experimentação se apropria de elementos de cinema e tem o tom da fala cotidiana. Winslow experimenta, mas de uma forma extremamente pop.
Além da habilidade para criar tensão, seu livro torna-se memorável principalmente pela habilidade de construir personagens interessantes e reais ao mesmo tempo. Ben, Chon e O. podem pareces estereótipos, mas há uma vulnerabilidade neles que faz com que tudo faça sentido, são jovens falhos, profundamente conscientes e, por isso mesmo, profundamente tristes. Não é difícil se identificar com eles, ou com a forte conexão que tem um com o outro.
O amor entre os três personagens é o verdadeiro motor da história. Chon e Ben amam tanto sua menina que farão qualquer coisa, arriscarão suas vidas sem hesitar, para salva-las. Ela os ama tanto que aguenta o que parecia impossível para não piorar sua situação. E eles mesmo amam-se tanto que não poderiam brigar por causa de uma menina. E não veem por que. A dinâmica entre os personagens funciona e O. é exatamente a ponta de um triângulo que parece não poder existir sem uma de suas pernas.
Os personagens secundários, mesmo os vilões do cartel da Baja, também são apresentados como pessoas com motivações, valores, medos, vontades. Egoístas, sem dúvidas, todos os personagens de Winslow são um tanto egoístas, mas humanos. E é o respeito a construção de seus personagens e a história que começou a contar que tornam o livro memorável: o escritor poderia forçar uma solução otimista, um final que deixasse o leitor leve e contente, mas ele não o faz, ele respeita até o fim a tragédia de seus personagens e seu próprio cinismo.
Como eu já havia notado em Kings of Cool, Don Winslow é um autor de livros cujo melhor adjetivo pra descrever seria “legal”. Ele é pop, divertido e tenso, conta uma ótima história sem cair no vazio. Entretanto, suas reflexões são acessíveis, revestidas de um pessimismo descolado que dá a tudo um humor irônico e amargo. Selvagens não é um livro bobo, muito pelo contrário, é um livro denso e extremamente divertido.
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Texto de autoria de Isadora Sinay.