Solarpunk, após os volumes de Vaporpunk e Dieselpunk, é o último lançamento da trilogia de ficção especulativa organizada por Gerson Lodi-Ribeiro. Tanto a literatura vaporpunk quanto a dieselpunk englobam histórias que se passam num futuro em que se utiliza tecnologia “do passado” — respectivamente maquinário a vapor, do século XIX, e maquinário a diesel, do início do século XX.
Neste volume, o salto temporal é um pouco mais amplo. A proposta deste é abordar um futuro em que o mundo funciona à base de energia limpa e renovável. Ou seja, ao invés de retrofuturismo, a temática se volta totalmente para o futuro. Não um futuro alternativo, mas um possível futuro. Um porvir otimista, já que considera que a tecnologia terá avançado o suficiente para garantir um mundo sustentável. Contudo, nem tudo são flores. A maioria das histórias pende mais para a distopia do que para a utopia — a balança pende mais para o lado “punk” do que para o “solar”. Mas isso de forma alguma prejudica o conteúdo.
Mais difícil que falar sobre um romance considerado complexo é falar sobre uma coletânea, pois qualquer comentário um pouco mais detalhado pode inadvertidamente entregar parte da história naturalmente não muito extensa. A maioria das tramas, mesmo ambientadas nesse futuro dito autossustentável, poderia prescindir desse ambiente, já que a tecnologia não chega a ter um papel essencial na história. Ou seja, é possível transportar o enredo para outro ponto no tempo e no espaço sem qualquer prejuízo da trama. Não é uma falha gravíssima, mas a história certamente seria beneficiada se trama e tecnologia estivessem mais interligadas.
Outra falha que aparece em menor ou maior grau em quase todos os contos é o excesso de explicações. Excessivas descrições tecnológicas e/ou extensas cronologias elucidando como se chegou ao momento atual da história são perfeitamente aceitáveis num romance de 300 ou 400 páginas. Mas num conto ou noveleta de menos de 20 páginas, além de cansativas, acabam por ocupar um espaço do texto que poderia ter sido usado para desenvolver trama e personagens.
Gerson Lodi-Ribeiro está acompanhado de outros oito autores já conhecidos no cenário de ficção científica nacional:
Soylent Green is People!, de Carlos Orsi Martinho, é uma noveleta policial noir que se passa num futuro em que a tecnologia para obtenção de energia baseia-se em biocombustíveis, reciclagem e energia solar. O protagonista é uma espécie de Sam Spade pós-século XXI. O autor conduz habilmente o leitor até o final pouco óbvio. É um dos poucos em que a tecnologia tem papel fundamental na trama e em que as explicações técnicas estão bem diluídas no decorrer da narrativa.
Confronto dos Reinos, de Telmo Marçal, autor português, também é um policial, sem a sutileza do noir, bem mais cru e violento. É ambientado num futuro em que os humanos se dividiram em Folhas de Couve (realizam fotossíntese) e Neandertais. O conflito entre as minorias é o estopim da trama.
E Atenção: Notícia Urgente!, de Romeu Martins, romanceia um evento real ocorrido em 2006. Cerca de 2 mil mulheres da Vila Campesina invadiram o horto florestal da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro (RS), para protestar contra o monocultivo de eucaliptos e suas conseqüências sociais e ambientais. O conto, dividido em duas partes, é narrado de formas distintas. Na primeira emula-se um registro jornalístico do evento, o que dá bastante intensidade à narrativa. A segunda é narrada em terceira pessoa e não consegue ser tão envolvente, além de conduzir a um desfecho que deixa o leitor com aquela impressão de “Ué! Acabou?”.
Era uma Vez um Mundo, de Antonio Luiz M.C. Costa, é de certa forma uma sequência da noveleta Ao Perdedor, As Baratas da antologia Dieselpunk. Narra a história de uma repórter convidada a visitar um centro de pesquisas sobre energia nuclear. Sua localização no tempo é que dá o tom diferenciado. É como se a tecnologia tivesse avançado vertiginosamente e, já no início do século, as pessoas estivessem vivendo numa economia socialista estável e sustentável. Assim, os personagens são personalidades da década de 20 — Pagu, Luís Carlos Prestes, Filippo Marinetti — em papéis coerentes a essa nova realidade.
Fuga, de Gabriel Cantareira, é sobre uma mulher que furta documentos importantes de uma grande corporação. Tenta ser um thriller de perseguição, mas tropeça na obviedade da narrativa e no excesso de discursos políticos simplistas e carentes de clareza.
Gary Johnson, de Daniel Dutra, é narrado pelo bisneto de um suposto amigo de Landell de Moura — padre católico, cientista e inventor brasileiro, considerado o Patrono dos Radioamadores do Brasil, e pioneiro em experimentos com ondas eletromagnéticas. A história é baseada em diários de seu bisavô que, por sua vez, documentou neles a parceria do padre com um físico americano racista na busca de uma fonte de energia renovável. Esse estratagema deixa a narrativa bastante envolvente, apesar de alguns percalços.
Xibalba Sonha com o Oeste, de André Soares Silva, é sobre uma professora cujo pai foi executado como traidor e se passa num mundo em que nações indígenas (tupis e astecas) governam as Américas sob o jugo da China Imperialista. É, sem dúvida, o conto mais confuso, tanto pelos nomes dos locais e personagens quanto pela descrição do universo criado, pouco coesa e carente de autenticidade. Sem contar o desenvolvimento falho da narrativa, que segue rumo a um clímax que não acontece.
Sol no Coração, de Roberta Spindler, aborda o mesmo tema de Confronto dos Reinos: humanos obtendo energia a partir do sol. Neste, ao invés da fotossíntese, a energia é gerada a partir de tatuagens feitas com nanodispositivos, que funcionam como os painéis solares atuais. Talvez a solução tecnológica mais criativa entre todas as histórias. A trama gira em torno de um homem em dúvida quanto ao melhor momento de fazer a primeira tatuagem no próprio filho. Aborda o tema sem enrolação, fazendo o texto fluir com habilidade.
Azul Cobalto e o Enigma, do próprio Lodi-Ribeiro, é uma noveleta que dá continuação a uma série de textos do mesmo autor (um deles publicado em Vaporpunk, Consciência de Ébano) em que uma nação, Reino de Palmares, liderado por descendentes de Ganga Zumba, é inimiga do Brasil. Apesar da narrativa muito bem construída, assim como os personagens bem desenvolvidos, poderia ser transposta para outro contexto sem perda de qualidade da trama, já que a “tecnologia” não tem papel essencial. Diferente das demais, é uma estória de espionagem/contra-espionagem que vale a leitura, apesar da pouca proximidade com a temática da coletânea.
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Texto de autoria de Cristine Tellier.
Obrigado pela resenha, Cristine!