Estamos definitivamente cercados de um riquíssimo universo narrativo, seja literário ou cinematográfico. Inúmeros filmes, livros e histórias em quadrinhos, de todos os gêneros possíveis e para os mais variados gostos. Porém, dentre esse cenário repleto de conteúdo, pouquíssimos são os artistas que verdadeiramente vão além de suas obras, transcendendo os limites da literatura e da imaginação, criando universos inteiros e nos transportando para dentro deles. Mike Mignola definitivamente é um deles.
Para quem não sabe de quem estou falando, Michael Joseph “Mike” Mignola é um quadrinista americano que começou sua carreira em meados de 1980 fazendo ilustrações na revista em quadrinhos The Comic Reader. Após passar alguns anos trabalhando para grandes editoras como a Marvel e a DC Comics (ilustrando e arte-finalizando trabalhos nas revistas do Demolidor, Punho de Ferro, Hulk, Batman, entre outros), em 1994 Mignola teve sua oportunidade de publicar pela editora Dark Horse Comics um trabalho completamente autoral, escrito e desenhado por ele mesmo, que viria a ser seu maior legado: Hellboy, um demônio invocado do inferno por Rasputin e os alemães nazistas com o intuito de trazer o apocalipse à terra. Porém, Hellboy é descoberto pelo Professor Trevor Bruttenholm e acaba por ser criado entre os soldados Aliados nos EUA. Desse ponto, ao invés de se tornar uma criatura das trevas que busca a aniquilação da humanidade, Hellboy se torna um ser de boa índole, integrante do B.P.R.D. (Bureau of Paranormal Research and Defence), organização secreta do governo americano que combate ameaças sobrenaturais diversas.
Uma obra recheada de referências culturais e históricas do mundo todo, Mignola usa e abusa das influências obscuras da literatura de H.P. Lovecraft e da narrativa épica de Robert E. Howard para criar algo único. Aliado à sua arte profundamente e claramente inspirada pelo movimento cinematográfico do expressionismo alemão dos anos 1920, Mignola brinca com técnicas de luz e sombra, visando dar mais profundidade às suas histórias de aventura, imersas em uma atmosfera sombria de terror.
Desde a primeira história sobre o “meio demônio” mais famoso dos quadrinhos (Sementes da Destruição, 1994), mais de 20 anos se passaram e muito mais histórias foram desenvolvidas no universo de Hellboy. Não apenas o protagonista, mas outros personagens ganharam seu destaque devido ao longo de toda a trajetória do herói, os quais, juntos, foram responsáveis por combater vampiros, lobisomens, fantasmas, demônios e até mesmo deuses antigos.
Mike Mignola é uma epítome no mundo dos quadrinhos. Não à toa, sua obra durou mais de 20 anos, além de ter recebido duas grandes adaptações cinematográficas e inúmeros spin offs em quadrinhos. Porém, depois de todo esse tempo, ao fim da 10ª edição do arco Hellboy no Inferno, o autor anunciou que vai encerrar seu trabalho no universo do personagem. Como um período de férias, querendo dar um tempo da construção de narrativas para poder explorar a pintura, segundo o próprio autor. Nas palavras do próprio Mike: “Eu não posso dizer ao certo se essa vai ser a última coisa do Hellboy que eu estarei envolvido. Eu não quero colocar uma nota final nisso, mas por enquanto esse é o fim da minha era desenhando e escrevendo sobre o Hellboy”.
Definitivamente é, de certa forma, uma triste notícia para seus fãs que, como eu, têm um carinho imenso pela obra em quadrinhos do autor, bem como por seus personagens. Mignola é um dos poucos por aí. Um artista indescritível, capaz de extrair complexidade estética e emocional da aparente simplicidade de seus desenhos e de seus roteiros. Uma pequena linha, círculos amarelos na escuridão e silhuetas estranhas são sempre indicativos do mundo obscuro que ele criou ao longo do tempo e a empolgação e a tensão que se passa ao leitor ao sugerir que o desconhecido reside nas sombras de nosso mundo real. Isso é Mike Mignola, e isso é muito do que ele nos deu ao longo dos anos.
Independente disso, é muito importante que grandes artistas como Mignola deem um tempo para seu trabalho, não apenas pelo esgotamento emocional e físico que trabalhar com quadrinhos evidentemente toma do artista, como também para que possa explorar novos horizontes dentro de sua arte.
“Quando eu matei o Hellboy, a verdade é que ele não foi ao inferno, ele foi para dentro de minha cabeça. Porque o mundo de “Hellboy no Inferno” é o mundo que eu comecei a criar quando tudo começou. Assim, o mundo que eu estou desenhando e pintando é sim o mundo de ‘Hellboy no Inferno’, mas a razão deste ser o pano de fundo deste mundo é porque é o que quero desenhar de qualquer forma. Eu peguei o Hellboy e o joguei em um mundo repleto de coisas que eu queria desenhar. Então agora, enquanto estou desenhando e pintando por diversão, eu vou continuar desenhando este mesmo mundo”, explica o autor.
Dessa forma, apesar de ficar emocionado em saber que Mignola decide tirar um tempo de Hellboy, dando um aparente fim em seu trabalho, o autor e artista merece esse tempo, essa possibilidade de ir além da sua própria arte e, quem sabe, ser tão inspirador na pintura quanto nos quadrinhos. E isso é inegável, podemos ter certeza de que a mente obscura de Mignola vai se transportar para as pinturas e, de certa forma, creio que todos os seus fãs estarão ansiosos para ver seus futuros trabalhos.
As mãos do artista nos quadrinhos vão deixar saudade. Espero que só por enquanto, pois acredito que ele ainda tem muito o que nos presentear e muitos mundos obscuros ainda a serem explorados.
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Texto de autoria de Pedro Lobato.
“a tensão que se passa ao leitor ao sugerir que o desconhecido reside nas sombras de nosso mundo real”, cara acho que tu resumiu muito bem o que é ler Mignola. Conheci Hellboy depois do Vortex e sou grande fã deste capeta camarada e o Mignola.
Muito bom o texto Pedrito.