“Em uma São Paulo noir, o amor está enterrado pela crueldade dos homens.”
Não importa, certas frases publicitárias nunca perdem o encanto. Algumas, como a de cima, ainda encaixam-se em boas histórias como se delas tivessem saído, espontaneamente, em uma noite fria de outono, com suas ruas geladas e os portões úmidos de uma cidade mergulhada em vultos e faces anônimas. Este é o clima cruel de Ditadura no Ar, uma minissérie independente ganhadora do prestigiado troféu HQMix, em 2013, que reúne quatro partes de uma mesma história de perseguição e sobrevivência no auge da ditadura militar brasileira, em uma São Paulo sessentista e sem amor – como muitos supõe que seja, mesmo.
O ano é 1969, e quem não coopera com a normalidade ditatorial pós-AI-5 é torturado pelo poder vigente. Simples assim, com o cidadão mais encurralado que nunca pela mão invisível do governo. Nisso, a namorada do fotógrafo Félix Panta, a militante e durona Lenina (numa alusão bem-humorada ao famoso comunista russo), é raptada durante um protesto ao som de Caetano Veloso, Chico Buarque e outros símbolos da resistência popular, destes idos. Inabalável em sua caçada, Félix se vê envolto em sua busca quase que impossível, mesmo tendo que trabalhar para o jornal sensacionalista O Pastiche, em perigosas entrevistas no submundo paulistano com sobreviventes de torturas físicas, e psicológicas tão típicas desses anos.
Félix tem a alma do detetive particular Sam Spade, interpretado pela lenda de Hollywood Humphrey Bogart, no clássico O Falcão Maltês – considerado por muitos o primeiro e o melhor filme noir já produzido (ou seja, obras de contexto urbano e do gênero policial que se misturam ao gênero do suspense, fortemente influenciadas pela estética do expressionismo alemão da década de 1920). Por essa vibe de mistérios e segredos, Félix se arrisca pelo Pastiche, se arrisca por sua namorada que, no fundo, sabe que nunca mais irá (re)ver, e coloca as mãos no fogo para ajudar uma amiga de Lenina que vem sendo perseguida por ter andado com a amiga revolucionária. Félix não é egoísta, e prova isso com atos, colocando sua paz antes das vidas que considera valerem muito mais, que a dele.
Vale destacar que a tensão e a impotência das pessoas em um cenário de total perigo institucionalizado no país é transmitida, em Ditadura no Ar, não somente pela sua dinâmica trama investigativa, ou pelo drama dos jornalistas que ousam trabalhar com a verdade no auge do absolutismo no Brasil pós-colonial, mas principalmente pela parte gráfica do álbum, em especial pela escolha de cores mórbidas e tons frios e obscuros a retratar a sensação perturbadora de se viver sem liberdade ou conceitos de bem-estar social, senão sob a brutal chibata da ditadura militar já constituída. Se é de fato a verdade que nos liberta neste mundo, tanto o Félix jornalista quanto o Félix apaixonado vão até os porões da ditadura para descobri-la, dispondo de um coração selvagem e uma noção suicida para defrontar-se com a realidade das coisas.
Distribuído desde 2016 pela editora Draco, Ditadura no Ar é quadrinhos adulto brasileiro da melhor estirpe, fruto do esforço criativo da dupla Raphael Fernandes, e do ilustrador Rafael Vasconcellos. A partir de uma ambientação sólida, e de um enredo repleto de surpresas e fruto de uma extensa pesquisa histórica, a engrandecer os mais curiosos sobre este difícil período da história nacional, palco para tantos heróis, algozes, e as vítimas que ainda lutam para não serem esquecidas nas areias do tempo, temos uma obra cuja qualidade da romantização dos fatos pode surpreender e entreter a todos.
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