Estrada para a Perdição (Road to Perdition, no original), lançada em três volumes durante 1999, é mais um trabalho do veterano autor de mistério policial Max Allan Collins, só que agora na forma de história em quadrinhos. A parceria com Richard Piers Rayner nos desenhos foi importante para resultar em uma das narrativas mais realistas sobre a lei seca, a máfia americana dos anos 30 e a grande depressão, e que originou o filme dirigido por Sam Mendes e estrelado por Tom Hanks.
Sinopse: o filho de Michael O’Sullivan, chamado Anjo da Morte, testemunha um crime, e, por causa disso, o chefão da máfia irlandesa o trai e mata toda a sua família. O’Sullivan foge, e, com o filho ao seu lado, orquestra um plano de vingança contra todos que estiverem na sua frente.
Feita toda em preto e branco, a narrativa se divide em duas: nas memórias diretas do filho Michael O’Sullivan Jr., o narrador da história, e nas matérias e livros de repórteres de crime que retratavam a época. Na primeira, o desenho segue a falta de lembrança concreta da narrativa, portanto as imagens não são tão detalhistas, soam, de fato como memórias. Já no segundo caso, os detalhes são impressionantes, podendo Richard Piers Rayner demonstrar o seu talento e versatilidade.
O narrador lembra ao leitor que está contando uma história
Detalhes impressionantes
Outro grande acerto que faz com que o quadrinho ganhe força vem do roteiro: a narrativa dura, realista, crua. Sem embromação, o autor mostra a realidade complicada da época. Nada na história é gratuito, muito menos a reação dos personagens a tudo que os cercava: as mortes, a ilegalidade dos negócios, a dificuldade gerada pela grande depressão que corrompia grande parte da sociedade.
Pode-se interpretar aqui que as mortes violentas são uma alusão a própria dificuldade da época que a parte honesta da sociedade lidava: matar um leão por dia para colocar comida na mesa da sua família. Michael O’ Sullivan era um herói de guerra que se corrompeu para prover sustento para a sua família; o apelido Anjo da Morte não é a toa: ele é um anjo quando consegue prover à sua família, porém, a morte suja a sua mão para os fins maquiavélicos que o levam a fazer o necessário.
Outras interpretações para seu apelido podem ser vistas como uma metáfora: na cultura ocidental, o Anjo da Morte pode ser tanto o Diabo quanto o bode expiatório angelical de Deus que se suja ao fazer o trabalho mandado por Ele. Nos dois casos, quem leva a morte ao seu objetivo se traveste da melhor forma para enganar as suas vítimas. E não é por acaso que O’Sullivan se veste com terno e gravata enquanto mata seus inimigos, traje mais respeitoso possível na sociedade ocidental.
Diferente do Diabo e de um Anjo da Morte de verdade, que usam da sedução para chegar ao seu objetivo, O’Sullivan subverte esta lógica preferindo o modo direto de confronto, percorrendo justamente os caminhos tortuosos da própria máfia para levar a cabo a sua vingança. Ele não rouba dos pobres, mas sim dos corruptos, ele não mata inocentes, mas sim quem faz parte do esquema. Em resumo, ele continua a sujar as mãos, mas agora com quem merece.
A valorização da família sob o prisma católico também merece uma reflexão. A hipocrisia da moral religiosa entre os mafiosos é retratada várias vezes ao longo da obra, quando O’Sullivan para em alguma delas para rezar e acender velas para cada pessoa que matava. A máfia sempre se refere a si própria como uma família e precisa da benção católica para se legitimar ao criar e manter seus valores, da mesma forma que a igreja também precisa do dinheiro dos mafiosos para erguer e manter suas instituições.
Max Allan Collins o tempo todo coloca a disparidade entre os dois lados que a vida mafiosa proporciona: da mesma forma que há uma possibilidade de um futuro promissor na vida criminosa escolhida em uma época difícil, também há dor e incertezas.
Por último, o nome da obra foi um ótimo acerto. A narrativa de fato leva tanto a cidade de Perdição, onde Michael O’Sullivan Junior deveria ficar sob a proteção dos seus tios maternos, quanto leva a perdição, a ruína, ao desastre daquela família.
Estrada para a Perdição vale a pena? Sim, por ser considerado um dos retratos mais fiéis de uma época de incertezas e dificuldades que, por causa disso, levantou a poeira do excesso de moralismo para revelar a verdadeira índole de uma sociedade doente e muito mais complexa do que aparentava ser.
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Texto de autoria de Pablo Grilo.