Explorando um filão em que Alan Moore (seu principal autor) é um verdadeiro especialista, Neonomicon traz uma história baseada em temas mágicos, mas sem a pasteurização comum dos produtos infanto-juvenis que invadiram as prateleiras das livrarias nos últimos dez anos. Uma série de assassinatos estranhos toma a atenção do FBI no decorrer das investigações, apresentando-se uma esquisitíssima série de coincidências.
O lápis de Jacen Burrows é de uma fluidez pouco vista nos trabalhos com roteiros de Alan Moore. Seu traço é limpo e moderno, fazendo uma contraposição com o soturno e bizarro presentes na trama, uma dicotomia semelhante ao que o desenho clássico de Dave Gibbons fez com a desconstrução heroica em Watchmen, ainda que Burrows consiga passar mais do que a premissa semelhante de discussão, uma vez que seu trabalho é esmerado o suficiente para ser mencionado até a despeito do expediente de Moore.
A dupla de detetives é formada por dois arquétipos muito diferentes, com um homem, negro, de meia-idade – Gordon Lamper – e uma mulher, branca, loira, – Merril Brears – num estereótipo muitíssimo ligado ao ideal de beleza. Em comum há o ceticismo inerente aos profissionais detetivescos, assinalado de modo a maximizar o sentimento, uma vez que eles se destacam da mediocridade da polícia local, ao menos aparentemente. Ao se designarem pelo primeiro nome de cada um, uma intimidade entre o par é demonstrada, porém com certa distância, cuidadosamente escolhida pelas partes.
Curiosamente, eles se tratam de modo jocoso, usando palavras torpes para se referir ao parceiro sem qualquer cerimônia, o que denota que eles estão há um bom tempo juntos. Não há espaço para explicações. Talvez pelo fato da publicação se basear em um texto de prosa do mago britânico, a trama é conduzida como uma das mais sutis de sua carreira, especialmente quando se mergulha no background dos homens abordados. Os dois são encarregados de falar com um preso, visto que alguém parece estar copiando o seu método de matar. O nome do interrogado é Agente Sax, um encarcerado que usa uma pseudo-linguagem, apesar de aparentemente ter sido instruído em inglês. Além disso, o personagem carrega um signo visual inconfundível, que é uma suástica na testa. Mas eles não logram êxito, só conseguem informações em períodos espaçados e muito tempo depois da entrevista.
É possível notar algumas referências bastante evidentes, e até óbvias, à obra máxima de Robert Chambers, O Rei de Amarelo, e um pouco da de Ambrose Pierce, porém com uma roupagem moderna. As investigações se elevam, mostrando a possibilidade de um culto de raízes ocultistas e uma série de assassinatos bizarros e sanguinolentos. A variação da arte garante um fôlego de comoção, tanto pelas vítimas quanto pelo mistério em si, instigando a curiosidade do leitor.
Os crimes hediondos são ligados quase que obrigatoriamente a desvios morais de comportamento, especialmente os relacionados à sexualidade. A primeira vítima é uma mulher de alta idade, de compleição física “prejudicada” ao extremo, que possui uma cômoda com ao menos dois jogos de gavetas repletas de consolos e outros brinquedos sexuais. No decorrer da trama, o casal de policiais, disfarçados de fãs de literatura lovecraftiana, se embrenha em uma caçada e chega até o dono de uma loja de artigos culturais, e se alinha a ele, mergulhando em sua intimidade parental e se surpreendendo com tudo aquilo.
A nudez dos “outros” é mostrada como algo decadente, diferente, e muito, do padrão estético visto em revistas pornográficas, o que revela uma crítica em muitos níveis, tanto ao comércio do sexo e do corpo quanto ao desnecessário julgamento com base nas aparências, especialmente em relação ao sentimento de subestimar o homem, tratando-o como ofensivo, seja por presunção ou por sua aparência física.
Os elementos que ocorrem, ao final, reúnem horrores inimagináveis, que esmagam os protagonistas daquela jornada e os reduzem a nada. As pouco mais de 50 páginas da obra são nauseantes e asquerosas se analisadas sob uma ótica normativa e comum. Além de conter um elemento sobrenatural indistinguível e indescritível, o roteiro é uma ode ao trabalho de Lovecraft, Pierce e Chambers, inclusive no que se refere à incomplacência com o leitor.