Ainda em 2016, chega ao Brasil dois dos trabalhos mais famosos do americano Peter Kuper, elogiado quadrinista por trás de Ruínas, de 2015, e este extraordinário Pau e Pedra, de 2004. Ao evidenciar a ascensão e (a esperada) queda da própria civilização do autor, viciada em poder, soberania e colonização sobre outros povos, devido a ganância e o autoritarismo para com outras nações – algo que, no século XXI, continua a pleno vapor, a obra se torna, no mínimo, memorável. Mesmo que o tema, aqui, já tenha sido tratado num sem-número de outras obras, tanto na literatura quanto no cinema, desde que a arte começou a refletir acerca dos grandes impérios que a humanidade já viu.
Impérios e poderes que, por x motivos ligados a ambição desmedida, e instinto de superioridade, voltaram as cinzas, em tempos ancestrais. Tudo começa com uma erupção vulcânica, ou seja, a aurora do homem. Neste caso, um gigante nasce dos destroços dessa erupção, num mundo em preto e branco que inveja o colorido, e quando o vê, o domina para estender seus domínios, sua própria lógica, e sua própria cultura. O gigante então vira líder de outros destroços ambulantes do mesmo vulcão, aparentemente, também desprovidos da dala, mas menores que ele, e que por isso, o obedecem cegamente – seu exército particular. Com o poder subindo rapidamente a cabeça, o titã passa a não aceitar represálias, e todos abaixo dele devem obedecê-lo ou serão presos. Mesmo ele tendo a mesma origem de seus vassalos.
Munidos da força e resistência dos seus corpos de pedra, essa pequena civilização cresce, ao passo que silencia o povo alegre e colorido que dominou, e escraviza-os para extraírem recursos da sua própria terra natal – um ex-paraíso. Um belo dia, ela vira uma cópia do império do gigante: um lugar sem vida, sem cor e oprimido. Se no começo de Pau e Pedra, o rei detinha das melhores intenções para consigo mesmo, e seus semelhantes, o poder perfura a rocha, e sobe a cabeça de uma forma irremediável. Todos sofrem com isso, e para enfatizar essa guerra de vaidades e contradições éticas, Kuper não precisa de uma única palavra, tornando célebre com imagens fortemente expressivas um mundo onde quem é maior manda, em geral, com as verdades que inventa, e protege.
Os EUA invadem territórios como cupim na madeira, não só por armas, é claro, mas com sua cultura através de inúmeros meios e veículos de comunicação a nível global – o chamado soft power, tendo Hollywood a principal aliada deste projeto. O autor deve sofrer ao expor as mazelas morais de sua nação com tamanho radicalismo, e objetividade metafórica, e produz uma alegoria política de grande sagacidade, na qual também o povo dá poder a seus superiores, e arca as consequências já que esse poder é desmedido – e incontrolável, seja por quem é mandado, seja por aquele que se deixa ascender, socialmente. A corrupção é ardilosa, colonial, tóxica, mas a natureza que dá, é a natureza que tira, e tudo pode, um dia, voltar a ser como era no início – nem que, para isso, tudo precise ser levado à estaca zero.
Unindo diversão, a reflexão, Kuper propõe um ciclo atemporal em que as raças ganham sempre mais uma chance de escolher o melhor caminho para se desenvolverem. Em paz e harmonia, ou, sob guerras e conflitos que a detonarão, cedo ou tarde. O processo é longo, mas o tempo natural das coisas é assim mesmo. Nota-se, inclusive, uma bela alusão ao valores iluministas, com a inteligência sobrevivendo sob a repressão que não vence os que veem além, e cultivam a liberdade como a mais inestimável das joias que se pode ter, e cultivar. Publicada nacionalmente pela editora Cia das Letras através de seu selo Quadrinhos na Cia, num fabuloso trabalho gráfico evidenciando os pontos fortes do traço grosso e chapado do artista, nesta fábula repleta de autocrítica, Pau e Pedra é um dos triunfos que a nona-arte ganhou neste século, e será lembrada entre outras preciosidades.
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