Criolo certa vez disse que não existe amor em SP. Em Sem Dó, Luli Penna coloca essa afirmação em xeque, ao narrar a história de Lola na São Paulo dos anos 20. Moradora do Brás, a arrumadeira se vê envolvida em um romance com Sebastião, um homem misterioso, de quem pouco se sabe.
A quadrinista faz da cidade um personagem de absoluto destaque, uma vez que São Paulo e seus edifícios, bondes e trens se impõe e ganha vida em meio ao silêncio com o qual a narrativa é desenvolvida. Penna abre mão dos balões de fala e de maior expressividade nas feições de seus personagens, se utilizando de recursos do cinema mudo, ao inserir quadros pretos com as falas dos personagens ao invés do recurso balonar.
Tal estratégia torna a narrativa perigosamente fluida, requerendo maior atenção do leitor aos traços da quadrinista, para não se perder em meio às sutilezas que permeiam o roteiro da autora. Em muitas vezes temos informações contextuais sendo exibidas através de recortes de jornais da época, anúncios etc.
Sem Dó fala sobre empoderamento feminino e o lugar da mulher na sociedade, em um período de efervescência social na grande metrópole do país. O conservadorismo da época é colocado em perspectiva com os anseios por liberdade de Lola, que descobre o amor e a desilusão em seus próprios termos, contrariando os interesses dos pais em relação a sua vida.
O nanquim de Penna encontra força na aparente simplicidade das pinceladas da autora, que exibe grande apuro arquitetônico ao ambientar de forma precisa importantes edificações de São Paulo, conferindo identidade para a narrativa. A cidade pulsa nos quadrinhos, reflexo de um flagrante anseio modernista que pairava na época, em contraste com a postura conservadora das estruturas sociais.
O final amargo e trágico da história de Lola quebra a expectativa criada ao longo da narrativa, evidenciando sem dó nem piedade a forma como as mulheres se viam encurraladas diante de destinos que não lhes apraziam, sem qualquer chance de escapatória, com pouco ou nenhum controle dos rumos que tomariam em suas vidas. Lola não aceita tal sina e quebra com esse círculo vicioso, tomando suas próprias decisões e arcando com as consequências delas.
Ao final, com um epílogo nos anos 70, Penna pincela em breves quadros algumas facetas do desenvolvimento do país, bem como das liberdades individuais das mulheres propriamente ditas, em meio ao caos do engarrafado e frenético trânsito paulistano.
Em tempos de demonização coletiva do feminismo, e da necessária resistência na luta por igualdade entre os gêneros, o desfecho de “Sem dó” deixa um nó na garganta, soa como um forte soco na boca do estômago, por se mostrar incomodamente atual.
Sem Dó é a primeira história em quadrinhos de Luli Penna, cartunista reconhecida por trabalhos para a revista Piauí e para as colunas Ilustrada e Ilustríssima da Folha de São Paulo, e foi publicada pela editora Todavia em 2017, com capa cartão e 192 páginas. A HQ é uma excelente recomendação, tanto como retrato histórico de uma São Paulo menos caótica do que a atual, quanto como narrativa gráfica extremamente inventiva e instigante.
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