Crítica | Michael Kohlhaas: Justiça e Honra
Michael Kohlhaas: Justiça e Honra adapta o romance homônimo, publicado entre 1808 a 1810, de Heinrich von Kleist. O autor baseou-se na figura real de um comerciante local para desenvolver sua novela, que trata a vida de um homem dividido entre a justiça dos homens e a concepção interna de honra.
A estrutura original da obra, dirigida por Arnaud des Pallières, foi mantida. Porém, a ação se desenvolve em Cévennes, no centro-sul da França. Mads Mikkelsen interpreta o personagem do título, um comerciante de cavalos que, para atravessar uma ponte, é indevidamente cobrado. Deixando em sua guarda dois de seus melhores cavalos e um vassalo como segurança, o vendedor retorna ao local dias depois com o pagamento e encontra os animais machucados e desnutridos e o vassalo, morto. Desejando justiça, o homem pede à corte um julgamento. Após ter o pedido negado, Kohlhaas decide impor sua vontade à força perante a injustiça que o tribunal cometeu.
A novela é considerada um dos livros preferidos de Franz Kafka, e também responsável por uma das poucas aparições públicas do escritor para fazer leitura de trechos da obra. Trata-se, inicialmente, de uma história com ideário romântico, com uma personagem central incorruptível vivendo a tensão entre a justiça divina e a dos homens.
Ao ter seu direito retirado por um nobre, Kolhaas utiliza sua influência e capital para arregimentar um exército que lute por sua causa. O grupo destrói locais que estão sob proteção do nobre, e esta violência chama atenção da Princesa Real, que tenta interceder. Porém, há um elemento paradoxal diante desta disputa. A busca quase fanática por justiça pelo comerciante o transforma em um pária diante do mesmo conjunto de leis. O exército não poupa homens, mulheres ou crianças, compondo um cenário curioso a respeito do que é, de fato, a justiça para o personagem.
Há tensões inversas dentro da história: a injustiça cometida pelo nobre com a devida consequência do ataque de Kolhlhaas, e a ciência por parte do comerciante de que, ao decidir levar suas atitudes até o limite, as leis também serão aplicadas contra si. A honra perde seu contorno heroico e parece questionar a fragilidade do que pode ou não ser considerado correto ou justo. Pode um homem em sua jornada por justiça retirar a vida de inocentes que não lhe fizeram mal? Como um bem maior definido pela honra pode ser capaz de derrubar séculos de leis criadas pelo Estado para, justamente, evitar que atos como esse saiam impunes? A luta do comerciante contra o nobre também pode ser lida como uma análise das classes sociais vigentes na época, ainda que a deturpada justiça do personagem demonstre uma vontade maior em desenvolver seus interesses pessoais do que tratar de uma representação entre esferas de poder.
A produção escolhe uma narrativa lenta, semelhante à prosa do século XIX. São cenas que evidenciam a beleza do interior da França e desafiam a percepção de que se trata de um país civilizado. A natureza pacata parece remeter-se a épocas anteriores, e o vazio dos cenários concentram ainda mais o drama do personagem, muitas vezes único em cena. A composição de Mikkelsen para Michael Kohlhaas segue o mesmo estilo de outras caracterizações anteriores do ator: são interpretações bem calculadas e contidas e que, em momentos chave, despertam maiores sentimentos. Um conjunto que faz do comerciante um homem dúbio, ciente de sua justiça ao mesmo tempo que parece realizar tais atos com sentimentos calculados. Uma dúvida que gera controvérsias, desde a figura impassível até o mencionado senso de justiça.
A produção muito bem realizada tem méritos por não apresentar em cena nenhuma eclosão de drama ou sentimentalismo, acompanhando a jornada de Kohlhaas sem um julgamento prévio, além daquele estabelecido pelo próprio comerciante. Porém, a referida dubiedade de sua figura retira parte da simpatia que a personagem poderia conquistar. Como se a moral sobre justiça e honra fosse o principal porto para reflexão, e não o homem que a executou.