Crítica | Miss Julie
Adaptado da peça de August Strindberg, Miss Julie é uma das muitas versões do conto, dessa vez capitaneada por Liv Ullman, que se mune de sua vasta experiência nos palcos para dar forma a famosa obra dramatúrgica. A história de Miss Julie envolve uma Irlanda em 1890, narrando uma trama de sedução e amores proibidos, ocorrido a partir das ações da personagem título, vivida pela cada vez mais linda Jessica Chastain. Logo no início é mostrado o outro ponto desta equação, o serviçal dedicado e hábil Jean (Colin Farrell), que chega a grande casa e se dirige ao cômodo de serviços, não se envolvendo com a realidade burguesa dos donos da casa.
O paradigma visto e revisto em milhares de novelas globais é mostrado sob um viés invertido, como o homem em uma posição degraus abaixo do ser feminino, curiosamente despertando a comicidade de uma peça antiga ter mais paralelos com a realidade do que os dramas chauvinistas vistos no horário nobre da televisão brasileira.
A transição entre completos desconhecidos e possíveis amantes ocorre muito rapidamente, fruto da vaidade desvairada de Miss Julie, que não pensa em nada além de seus próprios instintos e desejo. A vestimenta azul que usa faz grafar ainda mais sua pele alva e sedutora, produzindo em sua persona algo irresistível ao olhar e ao toque, mas ainda assim, Jean resiste bravamente nos primeiros momentos.
O espectro de sexualidade piora com a adição de álcool a interação de ambos, gerando não só momentos tórridos sexuais como aumentando o caráter de discussão, tanto do abismo entre a classe de ambos personagens, quando a hipocrisia e idiossincrasia do abuso de poder, que começa na questão econômica e termina em um embate sexista. A discussão a respeito da fidelidade conjugal também se intensifica, agravada pelo ranço da rejeição e da inveja clara, motivado pela disparidade de beleza entre Miss Julie e Kathlen (Samantha Morton), a esposa de Jean.
A frieza e crueza no tratamento com a vida inverte o seu interlocutor, o que permite a Chastain dar mostras de um over action soberbo, que não recai sobre vícios dramatúrgicos pueris. O desespero visto em suas feições gera empatia no público, que imediatamente apoia seu desespero e se apieda de sua alma. A boa condução de Liv Ullman faz até a ausência de talento de Farrell tornar-se suportável, já que sua interpretação serve de escada ao papel de sua patroa.
A encenação que a realizadora propõe, depende fundamentalmente de seu elenco, e o eco da experiência de Liv Ullman nos palcos é visto em cada gesto de sua personagem principal, abrilhantado claro pela forma exuberante de Jessica Chastain, em mais um papel que desafia suas capacidades dramatúrgicas.
Se não bastasse o absurdo que é o nível das atuações, as cenas finais contém um grafismo visual absurdo, com cores sobressaindo sobre a paisagem, lembrando o quando o cenário deveria ser subalterno e efêmero ante a existência, ante a vida. O sangue predominando sobre a água faz lembrar o quão pode ser curta a subsistência do ser humano, além é claro da continuidade do universo e da natureza independente da aparição do indivíduo, grafando a grandiloquência de Gaia em relação ao bicho homem. Miss Julie fala em diversos níveis, e serve a múltiplas interpretações de conteúdo.