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  • Resenha | Noite Ilustrada – Thedy Corrêa

    Resenha | Noite Ilustrada – Thedy Corrêa

    Noite Ilustrada - Thedy Correa - capa

    Poesia e música são artes próximas que secularmente estiveram entrelaçadas. Há defensores da poesia pura, lida e declamada, e outros que acreditam, com base no passado trovador, que a poesia também está amalgamada na música e, sendo assim, letras de canções seriam uma espécie de poesia também.

    Em atividade com o grupo Nenhum de Nós, Thedy Corrêa canta um rock brasileiro ornado com bonitas letras, normalmente reflexivas e melancólicas, tendo em Camila, Camila um dos altos pontos de reconhecimento e ponto de partida para diversas outras grandes canções do grupo.

    Dentro do cancioneiro do Nenhum, muitas canções versam sobre um estado melancólico e voltam-se para a dor de amores passados. Sentimentos presos na garganta que encontram representação poética como uma dor contida. Em outras letras, há uma vertente madura que reconhece a existência do amor, mas também a liberdade de viver só. Temas que também estão presentes no terceiro livro de Thedy, Noite Ilustrada, o segundo reunindo poesias.

    Na obra, Thedy se metamorfoseia na noite. É o observador silencioso da passagem das noites não dormidas por causa da insônia. Neste período em que o sono não vem, o músico faz da angústia a poesia entre o desejo de dormir e reflexões naturais daquele que observa a escuridão. Como elemento principal, a insônia atravessa diversos poemas, ora com um eu-lírico frustrado, ora utilizando a tristeza por não conseguir dormir. Poema após poema, o poeta dimensiona sua relação com a insonolência de maneiras diversas. Explora as sensações do ambiente insone, aguça o ouvido reconhecendo o que se passa ao redor, fantasia suposições de boas noites de sono e mergulha dentro de si, refletindo sobre amores e sentimentos passados. Exercícios realizados em noites de vigília.

    Os poemas que compõem a edição tanto dialogam com a estrutura formal da poesia quanto dão espaço para a simplicidade em poemas que se aproximam de canções cantaroladas nas madrugadas. No prefácio assinado por Marcia Tiburi, a escritora afirma que os lamentos noturnos contidos nos poemas são a luz comunicativa do poeta. Uma espécie de comunicação poética com aqueles outros insones aleatórios que, por ventura, leram sua obra também em madrugadas mal dormidas. Thedy universaliza a impotência do não-dormir em pequenas pilulas poéticas de tristeza agridoce. Retratos de um homem cansado pelo sono que não vem, tentando, como afirma Tiburi, abrir um caminho iluminado para que, ao menos, as palavras possam fluir.

    Um dos poemas do livro, Início Fim (pode ser ouvida abaixo), está presente no álbum de 2011 do Nenhum de Nós, Contos de Água e Fogo e também foi gravado no projeto seguinte, Contos Acústicos de Água e Fogo. Mesmo com uma estrutura mais rígida e próxima da poesia, incluindo os versos repletos de paralelismos, resultou em uma bonita canção que, aliada à interpretação vocal de Thedy, potencializa a delicadeza poética do eu-lírico. Uma demonstração musical de que é possível entrelaçar poesia, poema e canção.

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  • Resenha | A Ira de Nasi – Mauro Betting e Alexandre Petillo

    Resenha | A Ira de Nasi – Mauro Betting e Alexandre Petillo

    O leitor pode reconhecer o início desta história: grupo de amigos se reúne para distrair-se do tédio e monta uma banda despretensiosa com o intuito de passar o tempo. Nasce uma afinidade que mantém uma unidade íntegra e, em poucas apresentações, o grupo começa a ter um retorno de seus poucos fãs e reconhece que as canções produzidas são autênticas.

    A trajetória de paz e de luta de Marcelo Valadão, o Nasi, é uma destas jornadas movimentadas pela paixão musical. Dentro do rock´n roll brasileiro, muitas bandas desenvolveram-se no mesmo habitat – por isso uma falsa ideia de história conhecida surge a princípio – e músicos que hoje são aparentemente distantes dividiram, em outros tempos, bebidas, drogas, mulheres e indicações mútuas que em muitas vezes garantiram shows em casas renomadas e recomendações para contratos com grandes gravadoras.

    A Ira de Nasi, dos jornalistas Mauro Betting e Alexandre Pettilo, vai além da biografia do cantor da banda Ira!. Parte das experiências do cantor para identificar a cena musical de São Paulo, o surgimento do Ira! e como tanto Marcelo quanto Nasi – personagens que serão dissociados na vida do músico – atravessariam estas jornadas.

    De ascendência italiana, a infância do pequeno Valadão é apresentada brevemente, situando somente o necessário para que se compreenda o ambiente familiar e a sociedade da época. Além das primeiras fagulhas que despertaram o gosto pela música, o enfoque mais interessa ao leitor. Através desta expressão artística surgiria Nasi definitivamente, um apelido vindo da faculdade e transformado em uma espécie de personagem truculento, que nunca levava desaforo para casa, seduzia mulheres – sozinhas ou acompanhadas -, e dono de um grande poderio vocal grave. Uma contraposição com o homem Marcelo, mais doce e mais sensível às experiências da vida.

    A história deste homem duplo cresce ao lado da cena do rock paulistano. A obra transita entre a biografia íntima de Nasi e a apresentação dos primeiros movimentos do rock paulistano, da cena punk da época e de como o Ira!, após flertar com o estilo, rompe com qualquer denominação e, mesmo reverenciado, começa a se tornar um incômodo para outras bandas que também representavam boa parcela do público que assistia a elas. A música representava um grito de rebeldia contra o sistema e alinhava, além da revolta, outros sentimentos divididos pelas juventude. Na época, a expressão musical ainda era representativa, como um movimento capaz de questionar a sociedade e gerar discussões e polêmicas.

    O livro produz uma narrativa mista entre biografia e a trajetória do rock brasileiro com depoimentos diretos – em que há um parágrafo específico para as falas – do próprio Nasi e de outros escolhidos pontualmente, dando firmamento aos causos apresentados. Enquanto acompanha a trajetória do Ira!, os capítulos são iluminados por histórias por trás de grandes álbuns do rock brasileiro. Discos que ao público soam perfeitos mas que, aos ouvidos da banda e da produção, foram vistos ora de maneira simplista, ora geniais ou carregados de problemas internos que nem sempre transpareceram no exterior das canções e que eclodiram na década de noventa em uma derrocada na vida de Nasi por diversos ângulos.

    O rock brasileiro estava em baixa e outros ritmos tornavam-se populares e queridos ao público e gravadoras. Em consequência disso, o Ira! sentia-se menos criativo do que a excelente década de oitenta, mas ainda estava na obrigação contratual de apresentar novos álbuns. O vício em drogas agravava as amizades de Nasi e foi responsável por minar boa parte de sua verba conquistada nos últimos anos. Marcelo tornou-se amigo íntimo de traficantes e foi responsável por festas memoráveis regradas a drogas e bebidas. Diz o músico, porém, que no momento que tal fonte secou, os amigos desapareceram e, sozinho, teve de superar seus problemas.

    Os depoimentos do cantor atravessam a própria trajetória e são carregados de sinceridade, como um fiel que expia seus pecados a um padre. Ao recontar sua própria história, Marcelo revive-a com outros olhos. Como um anti-herói, assume que nunca foi santo. Mulherengo, dedicado aos vícios, viveu de maneira intensa, mas reconhecendo os frutos podres que colheu. Entre a violência gerada por si mesmo e contra si próprio, foi capaz de observar-se no fundo do poço e, por escolha, dar passos para sair dele, internando-se em uma clínica de reabilitação. A maturidade possível surgida com a idade potencializa mudanças em um novo momento de Nasi. Reconhecendo a vida dupla que viveu por muito tempo entre Nasi e Marcelo, aos poucos, reconecta-se com sua própria essência. Entrega-se ao candomblé, encontra guias como padrinhos e ressurge em uma versão melhorada e mais consciente de si mesmo.

    A biografia encerra a história anos antes do reencontro com o amigo Edgar Scandurra e a volta da banda Ira!. Na ocasião, Nasi lança o disco solo Perigoso, trilhando mais passos de seu caminho pela música. Talvez não esperava que retornaria aos palcos com uma das bandas maiores representantes do rock brasileiro.

    A carreira de músicos, principalmente envolvidos no rock ‘n’ roll, caracteriza-se por deliciosas histórias cíclicas, pontuadas por altos e baixos, como bons acordes agudos de guitarra. Mesmo que a origem de muitas carreiras tenha um ponto de partida em comum, a Ira de Nasi é um registro da trajetória que adensa a figura pública e revela o humano por trás da máscara, merecendo o testemunho do leitor que, compartilhando a história, também vive para contar.