Crítica | Raia 4
Premiado no Festival de Gramado de 2019, Raia 4 ganha a estreia nos cinemas e nas plataformas de streaming quase dois anos após sua finalização. É irônico que um filme que trate tanto de contatos físicos e isolamentos emocionais seja lançado num dos piores momentos da pandemia de Covid-19.
O primeiro longa-metragem do gaúcho Emiliano Cunha é situado em sua maior parte na capital Porto Alegre. Num tradicional clube de natação da cidade, a adolescente Amanda (vivida pela estreante Brídia Moni) encontra nas águas o vórtice entre refúgio e desamparo que a idade proporciona. Dos olhares atravessados com os colegas às falas interrompidas pelos pais, a desconexão da jovem se põe a todo momento como um teste de extremos, entre ternura e violência.
O filme é feito pela e para a atriz. Além de toda a perspectiva da produção ser mediada pela personagem, o rosto fechado e a expressão confusa são os pontos de foco que conduzem o espectador no turbilhão de sentimentos indefinidos e nunca verbalizados por Amanda. A intérprete vagueia por toda essa correnteza sem recorrer a facilidades de atuação, escondendo do público o que há por trás do pequeno corpo e até mesmo subvertendo algumas expectativas em nuances.
Dessa forma, o longa é inteligente ao trabalhar sua narrativa em diferentes campos de gênero. A espera por um típico coming of age é superada pelo pulsar de Amanda, que encara situações semelhantes de variadas formas num passeio entre o drama, suspense, romance e horror. Os elementos temáticos trazidos pelo filme reforçam a ideia de intergenericidade ao explorarem essa difusão tonal na fotografia e na trilha sonora, especialmente. A rigidez da câmera ganha movimento nas maiores interações da protagonista com o grupo de amigos, ao passo que as músicas variam de sons estridentes a uma calmaria harmônica ao longo dos 90 minutos. Cabe observar que as emoções pautadas nesses exemplos tomam forma nas atitudes da jovem, embaladas por uma lógica própria e que escapa ao julgamento de quem está em frente à tela.
Especializado em cinema de fluxo, o diretor e roteirista de Raia 4 se apropria de códigos dessa vertente cinematográfica para construir um universo particular para os limites de tempo e espaço moldados em torno da personagem principal. A abordagem não descaracteriza o filme dos gêneros já citados, mas encarrega seus desdobramentos de um sentido muito próprio e atrelado à protagonista e que devem conversar pessoalmente com cada espectador. Embora a visão do público seja a mesma de Amanda, as noções morais entre os dois polos são conflitantes e resultam numa experiência dirigida por corpo e alma.
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Texto de autoria de Arthur Salles.