Crítica | Chico & Rita
A animação é o gênero, máscara ou forma mais propensos à desigualdade por conta de quem faz Cinema ou assiste a ele; daí a importância, sendo bem direto, de Chico & Rita ou de outras e quaisquer outras animações adultas, ou apenas não-infantis, de qualidade similar. Similar na busca pelo inesperado, num vulgo ‘‘desenho animado”, ou também na procura em ter traços diferentes da maioria das animações, presas à ponte entre os estúdios Pixar/Ghibli, os quais ainda comandam o jogo de influências, ambos rodeados de outras pequenas produtoras tão boas quanto as maiores, mesmo antes de Toy Story abrir o mar vermelho das perspectivas popularmente despertadas por Disney e Companhia; mas, sobretudo, idênticas no destaque medido principalmente pela quebra de barreiras do que se deve, ou não, inquirir de uma versão gráfica, mais colorida e interessante do nosso lado de cá.
A obra de 2010, além de proporcionar um prazer delicioso de ouvir uma esplêndida trilha sonora caribenha, é balsâmica no toque da imagem, aliás, sendo que todo o visto remete ao frescor tropical, ao verão, o trópico em questão, começando pelo característico vestido amarelo de Rita, uma cantora livre, leve e solta ao céu, sempre límpido e ciano, sobre as ruas de Havana cobertas por cabos e gatos de eletricidade – fenômeno urbano pela qual a cidade é muito conhecida. Logo no início da história, nota-se a demanda por um pingo de contexto político na narrativa, e o clima de revolução ainda está no ar, no rádio de jovens adeptos à revolução, quando Chico, de pianista a engraxate, passa irrelevante pela rua e rememora em flashbacks seus casos e descasos com Rita, um amor para toda a vida.
Uma animação sem medo de ser feliz, uma analogia intervisual sobre o próprio caráter de seus personagens, divertidos, alegres, com nada a perder senão a alegria de estarem todos juntos, em relances de amor, ódio, sexo e dinheiro, numa cidade que abriga tudo isso e mais um pouco; reflexos realistas de um tempo efervescente, uma explosão cultural que o filme nos apresenta quase que naturalmente, sendo intrínsecas àquele cenário as mudanças sociais na cidade, e, novamente, as cores de cada plano ou cena. Um deleite, de fato. Os traços, finos, nítidos ou abstratos, sem brilho e chapados, à base de muita sombra, dão o tom certo à brincadeira entre estereótipos que os três diretores de Chico & Rita optaram por fazer, revelando cada vez mais, e pouco a pouco, o que realmente move a história. Muito além do senso comum, estilhaçado aqui na primeira e explícita transa entre as figuras-título. Sem medo de ser feliz.
A música e a paixão, donas desse e daquele mundo, marcadas em tudo o que foi paralelo às circunstâncias do casal, são um caminho inteligente para desconstruir qualquer sentido de inocência apresentado pelo que comporta o gênero, infinito em suas possibilidades surreais – ainda que a animação sempre as terá – por tratar a realidade por meio de um sensorial literalmente ilustrado. Somos cúmplices das idas e vindas de Chico e (adivinhe?) Rita, mesmo suspeitando que ambos ficarão juntos – ou não – no final. Mas é a simplicidade e a franqueza nesse jardim de belas intenções românticas e culturais que nos pegam de jeito e não largam de nós até o último timbre de um manifesto em prol da beleza e da liberdade, seja ela humana, seja ela artística.