Produção espanhola conduzida por Óscar Mártin, Amigo foi uma das boa surpresas do recente Cinefantasy. A trama consiste na discussão a respeito da relação entre dois amigos que se veem obrigados a conviver juntos depois de um acidente de carro. Davi se sente culpado pelo que ocorreu com Javi, agora deficiente e dependente de cuidados de seu amigo. Após o incidente, os dois vão para um lugar remoto, onde a mudança aparentemente é maior que apenas que a troca de domicílio.
A viagem propicia a possibilidade de explorar vários clichês de filmes de horror, embora no começo exista um foco maior no drama e nas dificuldades que o personagem de Javier Botet tem em se adaptar a sua nova rotina. Em contrapartida, acompanhamos o sentimento que consome o cuidador, interpretado por David Pareja. O filme mostra uma relação que se deteriora aos poucos. A questão moral mais evidente reside nas tentativas de Davi de parecer abnegado, onde pode se discutir a validade e sinceridade desses atos.
O filme usa um comentário metalinguístico inteligente. O personagem convalescente gosta de assistir filmes de horror em sua TV, e isso ajuda a inserir elementos típicos desses filmes dentro da trama, temperando ainda mais as diferenças entre os dois homens. Tanto o sujeito expansivo quanto o indócil são manipuladores e utilizam de suas condições para justificar seus atos, ambos se julgam injustiçados, bons amigos ou caridosos, e os dois exigem tolerância com seus próprios defeitos.
O filme trabalha bem sua cronologia, não é expositivo, e aos poucos injeta novos elementos de julgamento, deixando o espectador confuso em relação aos personagens. O drama de Amigo é bem construído, seu final poetiza a violência como um evento natural da vida e surpreende sobretudo pela carga sentimental que vai aumentando a medida que a relação de Javi e Davi se deteriora.
Produção espanhola do gênero ficção cientifica, Eva: Um Novo Começo começa em planícies geladas, mostrando uma mulher em apuros, e logo depois uma menina de roupas vermelhas corre até uma casa, para pedir ajuda. A menina é Eva, personagem de Claudia Vega, e desmaia logo depois de ser atendida por Alex Garel, de Daniel Brühl com quem a menina já tem alguma intimidade.
A aura de mistério corre toda a trama do filme de estréia de diretor catalão Kike Maíllo. Os créditos iniciais se dão inclusive com imagens belíssimas, que mostram a confecção de algo que aparenta um aspecto semelhante aos símbolos do genoma humano. Até certo ponto da trama, o mundo parece igual ao normal de seu ano de lançamento (2011), exceto quando um personagem é introduzido, chegando até o cenário onde a trama ocorre, acompanhado de um gato mecânico. Aqui, os “animais domésticos” são eletrônicos, e supostamente, não tem liberdade de pensamento.
Maíllo tem um modo todo seu de dirigir, consegue imprimir emoção e razão em medidas econômicas, é bem comedido ao tratar de questões melodramáticas, além disso, ele usa o artifício de brincar com sua linha temporal, Eva e Alex são vistos juntos, conversando, e o homem, que é engenheiro cibernético mostra a ela sua pesquisa e trabalho, apresentando o protótipo de menino robô que possui até gênio e caráter diferentes dos outros mecânicos mais simples. É estranho, pois esse experimento corre em paralelo com um robô de vontade própria, que supostamente já teria sido construído e já teria inclusive aparecido em público, mas a identidade dele é misteriosa.
Há toda uma trama emocional, que envolve inconfidências conjugais e enlaces amorosos, motivos e emoções que fazem os personagens de carne e osso se confundirem, se deixando enganar pelos seus sentimentos, julgando mal boa parte dos estudos que fizeram a humanidade chegar até esse ponto em 2041, além de inebriar os sentidos de lógica e razão pura e simples.
Os momentos finais são carregados de uma discussão pesada e profunda, sobre o acaso e sobre a mania humana de tentar superar seu criador, basicamente tentando replicar o mesmo sentido de criação de algo novo e complexo, como é a vida humana. Alex é um sujeito de moral nada duvidosa, é um homem capaz de fazer muito e que tem algumas carências, e no final da historia, se vê apelando para um estratagema egoísta e até compreensível em algum nível, mas que não deixa de ferir a ética da natureza de seu trabalho e pesquisa.
Tendo estreado apenas esse ano aqui no Brasil, o filme espanhol original Netflix Durante a Tormenta é o terceiro longa-metragem de Oriol Paulo, mais conhecido aqui no país pelo seu último trabalho Um Contratempo. O diretor e roteirista segue alimentando uma fama que às vezes é melhor não se ter – M. Night Shyamalan que o diga -, a de construir suas histórias em torno de grandes plot twists, de grandes reviravoltas imprevisíveis. Não seria muito cedo dizer que ele já é refém dessa fórmula, mas o que interessa é que mesmo se sim, ele acertou mais uma vez em suas devidas proporções.
O filme se passa no período de uma tempestade que dura 72 horas em duas épocas diferentes, uma se inicia no dia da queda do Muro de Berlim em 1989, e a outra exatamente 25 anos depois quando Vera (Adriana Ugarte) encontra pertences da família que morou em sua casa em 1989 e descobre que o garoto dono das fitas morreu atropelado naquele mesmo dia. Quando liga a antiga TV, passado e presente se encontram e Vera consegue se comunicar com o jovem Nico (Julio Bohigas-Couto) e o avisa do atropelamento, salvando-o da morte. Mas no dia seguinte, ao acordar, Vera descobre que seu marido não a reconhece e sua filha nunca existiu, levando-a a uma corrida contra o tempo para descobrir como reverter as linhas temporais antes que a tempestade termine.
Mesmo que o longa não entre de cabeça na viagem no tempo propriamente dita ou explore as divergências na existência de diferentes linhas temporais, é interessante como a complexidade do longa recaia sobre suas personagens e suas questões morais e emocionais. A jornada de Vera é movida por um desespero genuíno de mãe, enquanto inúmeras subtramas vão sendo injetadas por personagens coadjuvantes que não deixam de também ter suas motivações. Assim o longa pesca a atenção do espectador literalmente ao final de cada cena, é como uma engrenagem trabalhando para a próxima girar, é funcional mas aos poucos isso denuncia a longa duração do filme, não é muito difícil se cansar perto do clímax.
E dessas subtramas pequenas revelações vão construindo o típico final do cineasta, surpreendente sim, mas dessa vez desnecessariamente repetitivo. Primeiro nós, público, ficamos um passo a frente da protagonista e depois somos obrigados a ver, em uma cena no mínimo didática, ela nos alcançando. Em trabalhos menos controlados o momento seria considerado piegas, mas o diretor parece conhecer seu elenco e o faz vender bem a atmosfera quase novelesca, o saldo não é completamente negativo no fim das contas. Durante a Tormenta ganha pelo coração e por privilegiar as emoções em vez de ressaltar o místico ou o policial, mais uma vez fiquemos de olho no futuro de Oriol Paulo.
Desde muito cedo desenvolvi um sentimento um tanto negativo a respeito das últimos horas dos domingos. Um misto de preguiça, melancolia e ansiedade. Preguiça de ter de dormir cedo e acordar em tempo para as obrigações da segunda-feira; melancolia por sentir que ainda havia tanto a fazer e pouco tempo disponível mais uma vez (ah! Mais um domingo que acaba); e, ansiedade em relação a mais um início de semana e a tudo que me aguardava ao longo dela. Motivos para sentir tudo isso? Não tenho clareza, mas quando paro para pensar, acredito ter algumas respostas. Entretanto o foco aqui não é tratar disso. Todavia, entendo ser importante dizer que hoje esse sentimento já é mais que o resultado de hábitos, faz parte de quem sou.
Lembro aqui dos argumentos de Aristóteles em Ética a Nicomaco a respeito de como se forma o caráter. Simplificada e resumidamente, corresponde àquela velha máxima: tuas ações se tornam hábitos e esses se tornam teu caráter. No fim, escolher suas ações moldará seu caráter. Aristóteles chama isso de prévia escolha. Contudo, vertente majoritária da psicologia defende que o caráter se forma pela conjunção de inconscientes mecanismos de defesa. Se por escolhas (conscientes ou não) ou se por mecanismos de defesa, o fato é que para mim a segunda metade do domingo é a expressão do que é vazio.
Semana passada eu buscava um filme para assistir e me deparei com o título O Vazio do Domingo (em português). Já foi suficiente para me fazer decidir vê-lo. (Sem dúvida tive uma identificação direta e imediata). Se a versão para português do título fosse mais honesta ao original “La enfermedad del domingo“, certamente eu buscaria mais detalhes para decidir se o assistiria ou não. Ao me permitir a decisão tendo como base apenas o título, me expus ao risco de perder tempo com um filme de baixa qualidade. Para minha alegria e deleite, a película espanhola é excelente, profunda e faz valer cada minuto de cada cena e todos aqueles investidos em pensar sobre ele e sentir seu impacto após seu fim.
O roteiro traz um clima de mistério, que leva o espectador a ficar atento e se sentir instigado a aguardar o desenlace da história. Como um quebra-cabeças complexo, faz com que tenhamos de observar bem para irmos construindo o quadro completo. Da primeira à última cena, esse é o processo para quem está acompanhando o encaixe dos acontecimentos. Palmas ao roteirista (e diretor do filme) Ramón Salazar.
Se na função de roteirista o espanhol dá um banho de talento, não é possível dizer o mesmo sobre sua direção. Muitas cenas são conduzidas com base em certo exagero. Não o exagero afetado, espalhafatoso, justamente o oposto, um excesso de apatia que torna menos verossímeis muitas passagens. Em certos momentos, pequenas correções na postura, na fisionomia ou na entonação dos atores seria suficiente para elevar o padrão do filme. Aqui entra minha leitura a respeito das atuações: excetuando Bárbara Lennie interpretando Chiara, que encarna sua personagem e nos faz acreditar ser ela um indivíduo real (especialmente pela expressão de sua dor), todos os demais entregam muito pouco como resultado cênico. O que é uma pena, pois ao representar Anabel em toda sua complexidade de vida, Susi Sánchez poderia ter sido um dos pontos altos do filme. Infelizmente, ela não nos emociona como teria conseguido se melhor direcionada. Se a intenção de Salazar foi colocar verossimilhança, nos legou apenas uma frieza muito pouco real.
O verdadeiro destaque, nosso grande deleite, é a fotografia que nos é aí presenteada. Ricardo de Gracia, diretor de fotografia, foi de uma felicidade inadjetivável. Pelo que fui capaz de apurar, este é seu único trabalho em tal função. Desejo que ele possa ter outras oportunidades de executar esse talento; que mantenha sua cabeça, suas mãos e seus olhos tão bem afiados; e, que eu possa aproveitar seus futuros trabalhos. Em O Vazio do Domingo, ele conseguiu pintar a beleza da dor, a dor constante, intensa e profunda. Ainda consegue envolver tudo isso em uma atmosfera nebulosa, sem deixar de apresentar como os detalhes visuais podem ser gratificantes para a alma (claro, mérito compartilhado com o diretor). A paleta que aplica, majoritariamente em tons pastéis, é extremamente coerente com o todo.
Diante da dor, do vazio e da angústia desiludida de Chiara com tudo aquilo que lhe faltou em praticamente toda a vida – que por mais simples e comum que seja, é extremamente essencial e lhe é certo nem mesmo ter a chance de conquistar -, não posso me manter tão negativo em relação aos meus domingos. Tudo que eu sempre senti que me falta nesses dias é feito de puras mesquinharias ridículas frente ao que Chiara esperava ter nos seus.
O filme do jovem ator e diretor espanhol Eduardo Casanova, que recebeu as bênçãos do já cultuado realizador Álex de la Iglesia, arrebatou sucesso de crítica ao passar pelo prestigiado festival de Berlim. Além de Berlim, Peles (Pieles) angariou outros prêmios em importantes festivais ao redor do mundo.
A história do filme não nos é apresentada a partir do ponto de vista de um único personagem. Como encontramos normalmente em narrativas mais convencionais e de forte apelo comercial. O que encontramos no longa de Casanova, é um enredo que se constrói a partir de microuniversos pertencentes a um universo maior, em que personagens vivem um intenso conflito sobre como lidar com suas deficiências diante de uma sociedade embebida de tabus e preconceitos.
Mesmo que divido em diferentes esquetes tendo ao centro personagens com algum tipo de deficiência, como queimadura, nanismo, e outras inventadas pelo roteirista. Casanova une de uma forma inteligente todas essas pequenas tramas em uma maior. Pondo o escatológico e bizarro em cena, de forma a se perceber o tom provocativo e a forte influência do cinema trash de John Waters.
Formado por uma paleta de cores onde predomina-se um roxo profundo e alguns tons pastéis, o qual imprimem ao quadro fílmico certo glamour, que contrastam ferozmente com o conteúdo das cenas. A semiótica por detrás de cores tão vivas e suntuosas está no discurso do diretor sobre o que ele pensa sobre beleza.
A câmera de Casanova ora estática- desenhando encantadores planos simétricos; ora em movimento- bailando envolta dos personagens. Funciona tal qual um microscópio como dissera décadas antes o cineasta alemão Fritz Lang, nos revelando o âmago das personagens. Mesmo pecando em certos momentos de pura fetichização estilizada.
Rompendo com ideais estéticos o filme fala sobre beleza e sobre a aceitação do diferente. Sobre como certos tipos de pessoas podem aparentar serem estranhas para certos olhares e para outros não. No fundo, percebe-se que o filme grita o questionamento: Afinal, o que é beleza?
Diversas vezes o audiovisual e a literatura retrataram o crime perfeito, de Agatha Christie a Alfred Hitchcock, e os finais dessas histórias sempre trazem as melhores resoluções, Um Contratempo bebe muito dessas fontes e se torna um dos melhores suspenses do ano passado, mas por conta da ambição e do exagero escorrega no terceiro ato e o crime perfeito acaba perdendo o seu peso.
O filme, que é dirigido e roteirizado pelo espanhol Oriol Paulo, acompanha um jovem empresário que tenta provar para uma advogada especialista em depoimentos que ele não assassinou a própria amante. O suspeito é interpretado por Mario Casas de forma bastante sutil, o ator passa por vários cenários de cunho interpretativo e dá conta do recado, mas as pedras preciosas do filme são Bárbara Lennie, responsável por dar vida a vítima, e Ana Wagener, a experiente advogada, as duas entregam trabalhos distintos mas recheados de camadas muito complexas e imprevisíveis, no sentido de que suas personagens carregam muito em entrelinhas.
Entrelinhas essas que vão dando a Um Contratempo uma variedade de perspectivas, como o próprio longa gosta de firmar, é nos detalhes que se escondem as coisas mais importantes, e por isso um detalhe na narrativa leva a outro até que uma rede de versões, histórias e fatos se constrói, sendo o maior acerto de Oriol. A forma com que a trama vai ficando mais complexa a cada diálogo e como as personagens de Mario e Ana jogam um jogo quase palpável para ver quem é mais esperto, provam o excelente roteirista que Oriol é nesse trabalho.
O cineasta também tem bastante controle de mise-en-scène, a boa ambientação é proporcionada por uma fotografia engenhosa e uma trilha musical levemente ameaçadora, bastante coerente com o caminho que o filme leva. O problema, porém, aparece no começo do terceiro ato, se os dois primeiros são bem construídos e entrega boas surpresas, o diretor parece ansiar grandes revelações finais e acaba levando uma rasteira da própria ambição, ao tentar surpreender com um “sub-plot twist” a cada minuto a narrativa acaba deixando essas tramas sem respirar e de repente o final de Um Contratempo vira uma bagunça anti-climática e, mesmo que em baixos níveis, acaba desrespeitando todo o caminho apreciado pelo espectador até ali.
O ponto alto de um bom suspense é a relação criada pelo filme com seu espectador, mas infelizmente o novo longa do cineasta perde um pouco disso em seus últimos minutos, mas de jeito nenhum tira todos os méritos conquistados até então, construindo um bom suspense de camadas e tendo em seus personagens ótimas interpretações. Oriol tem talento e criatividade, restou aqui apenas uma filtrada, então fiquemos de olho em seus próximos passos.
O diretor espanhol Pedro Almodóvar é um autor admirado pela sua filmografia. No entendimento de uma parcela do seu público, Volver foi seu último grande filme, sendo seus filmes subsequentes uma tentativa de encontrar uma nova identidade para contar histórias. A Pele Que Habito e Os Amantes Passageiros são exemplares de uma abordagem completamente distinta entre si, e Julieta segue da mesma forma que os seus dois filmes anteriores.
O texto é baseado em três contos de Alice Munro, começando com a personagem-título vivida por Emma Suárez, uma mulher de meia-idade, bonita, que ao se encontrar com uma jovem de seu passado decide mudar todo o rumo de sua vida para continuar em Madrid, a fim de encontrar Antía, sua filha. O argumento passa então a mostrar o passado da mulher, que é interpretada em sua juventude por Adriana Ugarte, e a qual, por sua vez, encontra o pai da menina, Xoan (Gabriel Grao), um homem cuja intimidade envolve um sem número de traumas amorosos.
A construção do roteiro do filme é curioso e toma emprestados elementos retirados de Tudo Sobre Minha Mãe, além de conter em si referências óbvias a Alfred Hitchcock em relação a uma das fortes personagens femininas, vivida por Rossy de Palma. O modo como Almodóvar expõe o comportamento masculino é peculiar, mostrando os homens como seres aproveitadores e até, de certa forma, desalmados, por não haver neles a necessidade ética de justificar sua sede sexual em detrimento da incapacidade de seus pares em viver de modo plenamente saudável, uma vez que o arquétipo da esposa moribunda é usada mais de uma vez, e em gerações diferentes, e se torna ainda mais curioso que tal repulsa não faz de Julieta imune a esses mesmos encantos, retratando uma faceta fálica do destino, que teima em reproduzir essa maldição hereditária.
O mise-en-scène de Almodóvar segue afiado, seja na escolha dos tons vermelhos, como também nas figuras esculturais trabalhadas por Ava (Inma Cuesta), de homens decepados (quase sempre cabeça e genitália), servindo novamente de argumento dúbio em relação ao caráter masculino. A duplicidade está presente em quase todas as tramas e sub-tramas do filme, desde a escalada de insanidade pela qual passa Julieta – pontuada por uma estranha transição das duas atrizes no papel – quanto na origem do afastamento ocorrido entre mãe e filha.
O cineasta preenche seu roteiro com incertezas em relação a fidelidade, tanto argumentativa dos pares quanto em relação a romances e bissexualidade. O mistério em relação ao presente de Antía soa cansativo algumas vezes, mas condiz com a abordagem escolhida para o filme, que se foca em Julieta, mostrando que a fragilidade sentimental e carência não necessariamente suprimem a capacidade e força do ser feminino.
Apesar de cauteloso, Julieta ainda é um produto interessante, emocional e poderoso no montante de seus dramas. As informações sonegadas de certa forma ajudam na composição da obra, que mistura um drama novelesco e uma estética comum à narrativa policial clássica, servindo mais uma vez de ode à mulher.
Na pouca filmografia do diretor catalão Albert Serra, é visível sua preferência em abordar aspectos da faceta humana através de personagens retirados da História ou Literatura. Se fosse possível admitir algum sentimento que resulte da obra, dessa vez a curiosidade moveria a pequena fagulha que faz essa obra acontecer.
História da Minha Morte se trata de um encontro inesperado entre Casanova (Vicenç Altaió) e o Conde Drácula (Eliseu Huertas). Com esse plot, você poderia esperar uma trama envolvente do início ao fim, que amarraria a relação entre os dois personagens com paralelos. Mas, de longe, não chega nem a ser parecido com isso. Antes de tudo, o nome de Drácula nem sequer é citado, e o de Casanova é apenas uma vez pronunciado. Temos uma história que não assimila um contexto mas preza por esbanjar belas imagens enquadradas com uma luz barroca predominante nas tomadas noturnas, enquanto, visualmente, o filme ignora equipamentos que produzam alta resolução para abusar do blur, quase como um impressionista: tudo é visível mas turvo ao mesmo tempo.
Mas seria descuido dizer que não existem paralelos; de fato existem, e é apenas o único link entre os dois personagens. Casanova é uma espécie de ser que viveu muito mais que os ao seu redor, confinado em seu mausoléu, aprisionado a simplesmente contar histórias de seu passado, aventuras corriqueiras que não interessam a ninguém além dele, e que ao mesmo tempo são fascinantes para qualquer camponês do século XVIII. E por outro lado, sua faceta mais conhecida é presente em quase todo momento do filme: sua habilidade de seduzir e intrigar quase todas as mulheres pelas quais ele passa é uma característica quase mágica, quem sabe… assim como um vampiro?!
A construção da trama é lenta, se resume em pouquíssimos diálogos que servem de contraponto para os belos enquadramentos. A trilha sonora de câmara é incrível, mas não dura 1/4 da duração, diferentemente do profundo silêncio. Não existe trama a resumir. Além dessa rápida ideia básica que foi introduzida, não resta nada a ser descrito, mas apenas visto. Além de fazer um retrato mórbido dessa personalidade, Serra invoca um conflito inesperado e que demora a aparecer. Seu maior trunfo é nos manter na expectativa para o desfecho.
A animação é o gênero, máscara ou forma mais propensos à desigualdade por conta de quem faz Cinema ou assiste a ele; daí a importância, sendo bem direto, de Chico & Rita ou de outras e quaisquer outras animações adultas, ou apenas não-infantis, de qualidade similar. Similar na busca pelo inesperado, num vulgo ‘‘desenho animado”, ou também na procura em ter traços diferentes da maioria das animações, presas à ponte entre os estúdios Pixar/Ghibli, os quais ainda comandam o jogo de influências, ambos rodeados de outras pequenas produtoras tão boas quanto as maiores, mesmo antes de Toy Story abrir o mar vermelho das perspectivas popularmente despertadas por Disney e Companhia; mas, sobretudo, idênticas no destaque medido principalmente pela quebra de barreiras do que se deve, ou não, inquirir de uma versão gráfica, mais colorida e interessante do nosso lado de cá.
A obra de 2010, além de proporcionar um prazer delicioso de ouvir uma esplêndida trilha sonora caribenha, é balsâmica no toque da imagem, aliás, sendo que todo o visto remete ao frescor tropical, ao verão, o trópico em questão, começando pelo característico vestido amarelo de Rita, uma cantora livre, leve e solta ao céu, sempre límpido e ciano, sobre as ruas de Havana cobertas por cabos e gatos de eletricidade – fenômeno urbano pela qual a cidade é muito conhecida. Logo no início da história, nota-se a demanda por um pingo de contexto político na narrativa, e o clima de revolução ainda está no ar, no rádio de jovens adeptos à revolução, quando Chico, de pianista a engraxate, passa irrelevante pela rua e rememora em flashbacks seus casos e descasos com Rita, um amor para toda a vida.
Uma animação sem medo de ser feliz, uma analogia intervisual sobre o próprio caráter de seus personagens, divertidos, alegres, com nada a perder senão a alegria de estarem todos juntos, em relances de amor, ódio, sexo e dinheiro, numa cidade que abriga tudo isso e mais um pouco; reflexos realistas de um tempo efervescente, uma explosão cultural que o filme nos apresenta quase que naturalmente, sendo intrínsecas àquele cenário as mudanças sociais na cidade, e, novamente, as cores de cada plano ou cena. Um deleite, de fato. Os traços, finos, nítidos ou abstratos, sem brilho e chapados, à base de muita sombra, dão o tom certo à brincadeira entre estereótipos que os três diretores de Chico & Rita optaram por fazer, revelando cada vez mais, e pouco a pouco, o que realmente move a história. Muito além do senso comum, estilhaçado aqui na primeira e explícita transa entre as figuras-título. Sem medo de ser feliz.
A música e a paixão, donas desse e daquele mundo, marcadas em tudo o que foi paralelo às circunstâncias do casal, são um caminho inteligente para desconstruir qualquer sentido de inocência apresentado pelo que comporta o gênero, infinito em suas possibilidades surreais – ainda que a animação sempre as terá – por tratar a realidade por meio de um sensorial literalmente ilustrado. Somos cúmplices das idas e vindas de Chico e (adivinhe?) Rita, mesmo suspeitando que ambos ficarão juntos – ou não – no final. Mas é a simplicidade e a franqueza nesse jardim de belas intenções românticas e culturais que nos pegam de jeito e não largam de nós até o último timbre de um manifesto em prol da beleza e da liberdade, seja ela humana, seja ela artística.
O término de um casamento ainda é visto como um declínio perante a sociedade. A imagem, imposta durante séculos, da família como realização do eterno final feliz ainda comove e vende histórias e publicidade, mas não é um reflexo coerente da desintegração natural das relações. Diante do declínio e da devastação da perda, as unidades quebradas do casal permanecem em um mundo à parte, como párias de uma civilização que faz da felicidade um objeto de venda.
Indo além da história de uma mulher na crise da meia-idade, a personagem central de Gloria vive de silêncios e de vontades presas na garganta. Após dedicar-se ao casamento e aos filhos, a mulher reconhece o momento inerte de sua vida e tenta adaptar-se à nova realidade indo para bailinhos de terceira idade, onde encontra outros seres de corações solitários. Porém, as tentativas de mudança não aquecem sua realidade silenciosa.
A produção dirigida por Sebastián Lelio não julga os esforços anteriores da vida da personagem, mas ao debruçar-se sobre a crise da meia-idade, diante do vazio existencial, explora a difícil adaptação a uma nova consciência após a queda de uma união que, se não eterna, ao menos, duradoura. Gloria vive um momento de intensa invisibilidade em que nem os filhos crescidos não procuram mais a mãe para pedir conselhos sobre como lidar com as crises diárias. O vazio da personagem vem da falta de um local sagrado onde possa se reconhecer. Sem marido, sem a presença dos filhos, ela transita entre o trabalho e a vida cotidiana, sem uma motivação que a impeça de permanecer deitada no sofá durante noites ouvindo o barulho dos vizinhos.
A análise da meia-idade como crise não é um conceito novo. A produção italiana A Grande Beleza fez desse tema um de seus movimentos, embora a personagem do filme, Jep Gambardella, pareça mais acomodada do que em conflito direto com a velhice. O Que Falam Os Homens, do espanhol Cesc Gay, também aborda e analisa a ideia de um futuro após o fim do conceito de final feliz. Um senso de realidade que rompe com os desfechos tradicionais, focando a imobilidade humana diante de grandes perdas ou mudanças bruscas.
Há poesia nas cenas de Gloria. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com Gonzalo Maza se vale de imagens envoltas em silêncio para reproduzir o distanciamento solitário da personagem. Insone, ela ouve as brigas do vizinho. Em uma visita ao shopping, ao parecer reconhecer-se na marionete de uma caveira que dança nas mãos de um títere, como se visse seu próprio crepúsculo, calmamente deposita uma moeda no chapéu do mestre dos bonecos.
A sensibilidade melancólica é equilibrada pela verossímil interpretação de Paulina García, o que lhe proporcionou o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlimde 2013. Mesmo diante de qualquer situação, a personagem é sempre capaz de rir de si mesma. Canta enquanto trafega no trânsito, ri de suas desavenças e desventuras sem parecer uma figura afetada e abalada pela própria condição de solidão.
Em cena, não há insinuação fatalista que faça da idade ou da perda um fardo inominável, mas mostra que acúmulos de sabedoria e emoções, em um dito momento, não preenchem mais a lacuna do ser humano. Dentro deste conceito, como tão bem explica um dos pôsteres da produção, Gloria parece reconhecer que, embora se sinta paralisada, ainda é uma força significativa e, à sua maneira, pode dançar sobre o próprio universo. Não transformando sua história em uma carregada ilusão amorosa que transforma sua crise em um elefante branco que se destrói aos poucos.
Gloria é um personagem denso que em silêncio e nuances evidencia que o momento vazio sentido é apenas a transição natural de uma história a outra. De um fim inevitável, posto que tudo termina, mas ciente de que o caminho, mesmo que árduo, foi percorrido de maneira bela e memorial.
Dentro de um avião fora de controle, um grupo de personagens excêntricos acredita estar vivendo suas últimas horas de vida. A partir dessa premissa, o espectador testemunha a volta de Pedro Almodóvar ao tipo de filme que o consagrou: a comédia. Desde Kika (1993) que o diretor havia deixado de lado esse estilo. E retorna a ele da forma mais escrachada possível. Mas, afinal, é Almodóvar, e de que outro modo ele o faria?
Para o espectador saudoso dos primeiros filmes do diretor, com seus cenários de cores fortes, personagens extremos em situações extremas, figurinos extravagantes, diálogos disparados em velocidades alucinantes, está tudo de volta. E isso talvez dê a impressão de que o diretor está referenciando ou mesmo parodiando a si próprio. É difícil não relembrar de Mulheres à beira de um ataque de nervos que, assim como este, passa-se praticamente em um único cenário – um apartamento – e há uma personagem que deixa de ser virgem durante a estória. Além disso, há várias cenas marcantes – chocantes ou engraçadas – envolvendo drogas, sexo ou ambos.
O rol de personagens, uma fauna bastante diversificada, inclui três comissários de bordo homossexuais – um que bebe, Joserra (Javier Cámara), um que consome drogas ilícitas, Ulloa (Raúl Arévalo) e um que abraçou a religião para se livrar dos vícios, Fajas (Carlos Areces); um piloto bissexual, Álex Acero (Antonio de la Torre), cujo amante é Joserra; um co-piloto “saindo do armário”, Benito Morón (Hugo Silva), por quem Ulloa tem uma queda; uma vidente, a virgem que deixa de ser, Bruna (Lola Dueñas); uma cafetina de luxo, Norma (Cecilia Roth); um empresário corrupto; um ator, Ricardo Galán (Guillermo Toledo); um agente de segurança; um casal em viagem de núpcias. Os personagens são estereotipados? Ao extremo, são quase caricaturas. Seus trejeitos e neuras são exagerados? Sem dúvida. Mas boa parte do humor e da crítica ácida deve-se justamente a esses fatores.
Enquanto o roteiro se atém às ações e reações dos personagens dentro do avião, a trama se sustenta. Contudo perde força ao sair do ambiente confinado e mostrar uma subtrama, em que uma moça andando de bicicleta atende um telefonema do ex-namorado (o ator) num celular que “caiu do céu”, ou mais precisamente, das mãos de uma suicida que também conhece Galán. Apesar de interessante, principalmente aos que têm sua atenção atraída pela beleza da moça, Ruth (Blanca Suárez), a sequência não é muito relevante, e poderia ser encurtada ou mesmo suprimida sem qualquer prejuízo.
O título em inglês, I’m so excited, é o nome da música utilizada como trilha sonora para um número de dança protagonizado pelos comissários a fim de entreter os passageiros – apenas os da primeira classe, pois os da classe econômica estão dormindo, todos foram dopados assim que a tripulação descobriu a pane. A partir daí pode-se ter uma ideia nítida do quão non-sense, exagerado e, ao mesmo tempo, sarcástico é o filme. Esse tom exagerado se vale ainda das cores fortes do cenário e da fotografia, com enquadramentos que lembram programas de tv – principalmente na hora do “show”.
Não se pode afirmar com veemência que Almodóvar tenha perdido a mão. É possível que sua intenção fosse mesmo fazer uma paródia de suas melhores comédias. De qualquer modo, não deixa de ser um filme menor. Mas, levando-se em conta que Almodóvar é um autor – em oposição ao conceito de artesão, ou diretor por encomenda -, vale a máxima defendida por Truffaut na revista Cahiers de Cinéma: “Um cineasta que tenha feito grandes filmes no passado pode cometer erros, mas os erros que ele cometer têm toda a probabilidade, a priori, de ser mais apaixonantes que os êxitos de um ‘artesão’”.