Crítica | O Ato de Matar
Nos últimos anos, a produção de documentários sobre a 2ª Guerra Mundial mostrando os horrores do nazismo se multiplicaram na TV. Alguns tentando fazer uma análise séria sobre a psicologia do fascismo alemão, como Arquitetura da Destruição, até produções genéricas do History Channel que fazem análises sobre os tipos de metal usados na solda dos tanques de guerra.
No entanto, o que une todos esses documentários é a distância fria com que somos seguramente apresentados aos protagonistas de tamanho horror, o que de certa forma desumaniza todo o período, transformando-o em um ato de “loucos” que nada teriam a ver com a gente ou com a nossa organização social.
Nesse sentido, o maior mérito do documentário de Joshua Oppenheimer (com produção de Werner Herzog e Errol Morris) é justamente o de tirar essa distância entre os acontecimentos e o espectador, colocando-os em contato direto com alguns dos responsáveis pela sanguinária perseguição a acusados de “comunismo” no regime de Suharto na Indonésia da década de 1960 em plena Guerra Fria, e como o filme diz claramente, sob a velada aprovação do Ocidente. “Eu me senti como se estivesse na Alemanha 40 anos após o Holocausto e os nazistas ainda estivessem no poder”, afirmou o diretor em uma entrevista, o que resume bem o sentimento do filme.
Ao mesmo tempo em que entrevistava os autores de um genocídio, calculado entre 500 mil e 2 milhões de mortes, Oppenheimer mostrava uma reencenação dos métodos de assassinato daquela época sendo feitos como filmes pelos próprios autores de forma despreocupada com o conteúdo, tentando copiar o estilo dos filmes de ação americanos. E em momento algum mostra remorso ou mesmo vergonha pelos atos cometidos, agora detalhadamente narrados e filmados através de histórias tradicionais ou mesmo imitando estética de videoclipes musicais com cachoeiras ao fundo.
Contando até hoje com o apoio dos EUA, o governo indonésio não fez nenhum tipo de retratação, e as famílias das vítimas, além da população comum, ainda vivem sob temor de que aquela época volte. Tanto que é difícil para os personagens principais arrumarem atores para serem “extras” e atuarem como os tais “comunistas”, com medo de serem confundidos realmente com eles.
Todo o terror dos brutais métodos de execução são mostrados passo a passo em meio a piadas e risadas sobre a situação. Comentários anedóticos são misturados a um sentimento de orgulho por ter servido à pátria, e a doutrinação da juventude sob a mesma ideologia de combate a esse suposto inimigo externo se mantém viva como nunca. Todos, sem exceção, acreditam que salvaram o país.
No entanto, apesar de toda a brutalidade, um dos personagens do documentário, Anwar Congo, mostra que toda violência contra o outro é uma violência também contra si próprio, e essa conta um dia chega. Após ele fazer o papel de vítima em uma sequência de tortura ridiculamente encenada no estilo dos filmes de máfia dos anos 40, Congo desaba emocionalmente e não consegue mais se recompor, questionando se era daquele jeito que as vítimas se sentiam. Quando confrontado com a informação de que elas se sentiam pior porque sabiam que iriam morrer, ele ainda demora a processar toda essa variedade de sentimentos, e grande parte da culpa aflora, até mesmo fisicamente, em cenas angustiantes de se ver.
O Ato de Matar é brutal na medida certa ao mostrar que a humanidade está longe de atingir qualquer status de civilização, como o Ocidente propaga que atingiu. Na Indonésia do filme, ONU, Convenção de Genebra e o Tribunal de Haia são ridicularizados, como se não tivessem a menor importância, e toda a ideologia moderna dos direitos humanos ali naquele universo, simplesmente não existe. Não é ignorada ou descumprida, não existe a compreensão de que o outro ser humano possui o mesmo valor e direito de viver que o seu, independentemente das crenças que professa. Em uma sociedade em que até hoje os executores de tamanhos crimes contra a humanidade gozam de privilégios econômicos e sociais perante o caos de uma sociedade desajustada, que louva seu passado violento, o filme torna-se necessário para nos fazer refletir como o mundo é maior, e pior, do que pensamos ou gostaríamos de acreditar.
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Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.