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  • Crítica | O Tesouro

    Crítica | O Tesouro

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    Cornelio Porumboiu, um dos diretores mais consistentes da Romênia, vem contribuindo amplamente – talvez, protagonizando – com a ruptura do padrão de narrativa característico do cinema romeno e a busca de uma nova e multifacetada identidade para este mercado. Com O Tesouro (Comoara no original), Poromboiu demonstra que tratar de temáticas das quais se tem domínio e amplo conhecimento pode ser o maior trunfo de sua filmografia e, consequentemente, da nova fase vivida pelo cinema de seu país.

    O filme conta a história de Costi, um funcionário público interpretado por Cuzin Toma, e sua pacata e tranquila vida ao lado do filho e da esposa, vivida pela atriz Cristina Toma. A família mora em um pequeno apartamento próximo ao centro da capital Bucareste e tem sua bucólica rotina alterada após um pedido de ajuda de seu vizinho, Adrian (Adrian Purcarescu), envolvido em uma dívida com juros altíssimos. Costi nega a ajuda financeira, mas Adrian tem então outra ideia que consiste em comprar um detector de metais para ‘caçar’ na casa de seu irmão um tesouro que ele acredita existir desde quando era criança.

    É interessante observar como o filme se funde à questão social da Romênia através do conceito do tesouro. Tudo o que é encontrado em solo romeno é considerado pertencente ao Estado, tendo o ‘descobridor’ direito a cerca de apenas 30% do valor de sua descoberta. Tal prática consiste certamente na política mais rígida no mundo em relação ao assunto.

    Tanto Costi quanto Adrian são contemporâneos da crise comunista de Ceausescu, um dos principais marcos na história do país, e não possuem a menor intimidade com luxos. A habilidade do roteirista ao mesclar as vidas dos personagens com a história da Romênia e os reflexos ditados pelos rumos do capitalismo no país impressiona, pois soa natural e inteligível mesmo para quem não tem intimidade com este recorte da História. O ambiente, as interpretações, o explícito e o implícito no texto lançam o espectador a este conceito de maneira bastante assertiva e funcional. Mais uma vez, como em tantas outras obras do cinema europeu, o principal acerto aqui é a escolha e valorização de um recorte aparentemente banal da vida de pessoas igualmente banais e o espaço que a obra abre para a análise e interpretação de vários campos da realidade romena.

    Apesar de reafirmar a filmografia de Porumboiu, O Tesouro representa também, de certa forma, uma movimentação interna na cena cinematográfica do país, ao passo que elenca novos tópicos, novas estruturas narrativas e olhares diversos ainda que mantendo o foco social. O humor seco e de desenvolvimento gradual talvez seja o calcanhar de aquiles do projeto, mas denota fidelidade e apreço pela realidade local. Coisa rara num momento em que a preocupação com o quanto se vende ganha mais espaço em detrimento da qualidade do produto vendido.

    Texto de autoria de Marlon Eduardo Faria.

  • Crítica | Casamento Silencioso

    Crítica | Casamento Silencioso

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    Um dos filmes romenos que mais se destacaram no final dos anos 2000, Casamento Silencioso tenta encontrar sentido ao contar uma história real inusitada. Em uma vila romena dos anos 50 que vivia sob o domínio soviético, um casamento é interrompido após notícias da morte de Stalin. Como os oficiais decretaram luto de uma semana, eles comemoram o evento de forma silenciosa para evitar chamar atenção das autoridades.

    Para deixar mais palatável ao espectador a crueldade do ocorrido, o roteiro escrito pelo diretor Horatiu Malaele e Adrian Lustig recorreu ao burlesco para construir uma narrativa com leve tom de fábula. Os personagens são um dos pontos altos do filme, pois são tão únicos que acabam funcionando dentro daquele universo esquisito, que precisa ser daquele jeito para contrastar com a triste realidade que ocorre no final.

    A atuação da maioria dos atores é caricata e canastra. Nenhuma atuação se sobressaiu, mantendo a coesão de apresentar todo o vilarejo como um grande personagem. Em relação à direção de Horatiu Malaele, é eficaz dentro do que se propôs. O estranhamento daquele universo é menos sentido devido ao tom de comédia. A direção melhora quando o casamento passa a acontecer sem som algum, homenageando o cinema mudo. É memorável a sequência do telefone sem fio.

    Devido à crueldade que ocorre no final da narrativa, o espectador entende o tom do absurdo que o diretor optou. Malaele, como nós, usou a sátira para tentar compreender o que aconteceu: a reação desproporcional dos oficiais soviéticos com os habitantes de uma vila. A edição de Cristian Nicolescu e a fotografia de Vivi Dragan Vasili cumprem bem o seu papel, mas sem se destacarem.

    Casamento Silencioso vale a pena pois é um filme diferente que discute o delicado tema do papel da Romênia sob domínio soviético.

    Texto de autoria de Pablo Grilo.

  • Crítica | Apenas o Vento

    Crítica | Apenas o Vento

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    Após a onda de bons filmes vindos da Romênia alguns anos atrás, entre os quais o ganhador de Cannes Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, o cinema do leste europeu como um todo vem ganhando atenção. Filmes da Bulgária, Bósnia e Hungria ganharam mostras específicas, atraem filas nos grandes festivais e passaram a ser distribuídos comercialmente nos cinemas independentes do país. É o caso de Apenas o Vento, longa de Benedek Fliegauf, diretor experiente e conhecido em seu país, mas que só agora teve um de seus longas exibidos no Brasil.

    O filme se baseia em uma série de ataques a famílias ciganas ocorridos em vilarejos da Hungria um tempo atrás, mas ao invés de buscar construir um panorama largo, ou tentar explicar o problema do racismo no país, ele se foca em apenas uma família e acerta por causa disso. A protagonista é Anna, uma menina de 13 ou 14 anos que vive com o irmão, a mãe e o avô doente em um casebre em uma comunidade cigana enquanto esperam o pai, que se mudou para o Canadá, mande dinheiro para juntar-se a eles.

    Anna acorda o irmão, vai a escola, fala com o pai ao skype, cuida da menina pequena de uma vizinha e é, em linhas gerais, uma menina quieta e responsável. Ela não é particularmente diferente de qualquer outra adolescente e talvez isso seja importante para que a brutalidade dos fatos narrados alcance todo seu potencial. Anna cumpre suas funções e tenta fazer seu melhor, mas Rió, seu irmão menor, parece mais consciente do beco sem saída em que se encontram: ele falta aulas e constrói um esconderijo, ele sabe, melhor que qualquer membro de sua família, que eles vivem em perigo apenas por serem quem são e que agirem como “bons cidadãos” não os livra de nada.

    Fliegauf enfatiza o senso de comunidade dos ciganos, especialmente a preocupação deles em cuidarem da própria segurança, uma vez que a polícia do país nada faria por eles. Em uma das melhores cenas do filme, dois policiais visitam a cena de um dos crimes e um deles expressa, se não sua aprovação, ao menos sua indiferença para com o que está acontecendo. Esse policial é da região e sua cor de pele e feições indicam que ele provavelmente tem origem cigana, mas uma vez fora, uma vez incorporado pela sociedade oficial, ele já não se importa e chega mesmo a odiar o povo “primitivo” de onde saiu. Portanto, resta a comunidade criar sua própria milícia: homens armados vigiam as estradas, interrogam os passantes a respeito de movimentação estranha e tentam vigiar a casa das famílias, mas não tem sucesso.

    O diretor não tenta em momento nenhum explicar, ou investigar, o acontecido. Ele apenas o relata a partir do ponto de vista de uma menina. Tudo é filmado com uma câmera na mão e praticamente sem recursos de iluminação: a maior parte das cenas são externas e a internas são tão escuras que mal se consegue ver o que está acontecendo. Não é, a princípio, uma escolha estilística, é simples falta de recursos, mas o fotógrafo de Apenas o Vento sabe tirar o melhor de sua situação e constrói oposições entre os campos livres e a casa claustrofóbica, a escola ameaçadora e o aconchegante esconderijo de Rió. O ar documental conferido pela câmera manual também é útil e enfatiza o anúncio de “baseado em fatos reais” exibido antes do filme.

    Apenas o Vento acerta ao não tentar ser mais do que é, ao tratar de um tema social espinhoso e uma ferida profunda da Hungria sem pretensões sociológicas, mas a partir dos seres humanos envolvidos. É memorável a cena que dá título ao longa em que Anna, após ouvir um barulho, diz “é apenas o vento” e não sabemos se ela o diz como um desejo, ou para enganar-se. Rió, no entanto, é mais cínico que a irmã e não se deixa enganar. Entretanto, o filme é excessivamente arrastado, fazendo com que 86 minutos pareçam mais de duas horas, sua sutileza, embora bem feita, não é suficiente para sustentar a história, que é no fundo inexistente. Fliegauf tenta construir um retrato de uma situação e uma família, usando-os como metonímia para um povo, contudo, ele se recusa a dar algum tipo de conflito ou vida interior a essa família (a exceção relativa de Rió) e acaba perdendo o espectador, que é incapaz de se conectar com seus personagens.

    Por causa disso, no fim o que era uma história sobre o lado humano da coisa, acaba sendo fria e distante, um retrato de alguém de fora para pessoas de fora. Ainda assim, Apenas o Vento é um exemplo notável de um cinema feito fora dos grandes centros, com poucos recurso s e que ainda assim se recusa a cair nos clichês do cinema de “mazelas sociais”. É um bom filme, principalmente na cena final quando afirma que não importa o quanto aquelas pessoas sejam seres humanos, elas serão, para a Hungria, ciganos acima de tudo.

    Texto de autoria de Isadora Sinay.