Crítica | Relatos Selvagens
Uma coisa é verdade: A versão pós-moderna de Amarcord não faz feio, pelo contrário, faz rir quem suspeitava que o cinema argentino fosse invejável ao do Brasil. Essa colcha de retalhos toda empolgada é uma heterogênea visita, às vezes sem qualquer consciência de expressões peculiares a determinada história, mas com noções muito fortes de impacto e narrativa em blocos, ao clássico de Fellini, ou melhor, a partir do clássico, sem nenhuma responsabilidade com o cânone italiano em questão, nesta crítica.
Relatos Selvagens é uma viagem histérica de um sociólogo que esqueceu seu remédio tarja preta em casa no embarque de um trem que atravessa a Argentina, recolhendo histórias (não tão diferentes assim) de seus conterrâneos. Assim, o filme encontra sua apoteose sumária em duas passagens diferentes mas que se completam na missão de sintetizar o filme: a inicial e hilária reunião coletiva em um avião, onde todos se encontram sem saber como nem por onde, e a rebeldia do personagem de Ricardo Darín diante de um sistema corrupto, enfatizando – em analogia – a insatisfação do cidadão comum perante a conjuntura política do país. Se melhor tratadas, essas e mais uma ou duas exaltações poderiam ser as únicas do filme, tamanha é a força e o forte destaque em meio a outras nem tão favoráveis ao saldo inegavelmente positivo da obra.
Uma iniciativa corajosa, apoiada pelo já lendário Pedro Almodóvar, que produz um material equilibrado, fragmentado por excelência, conduzido pelas peculiaridades de cada história às suas próprias, enquanto uma peça única, mas que consiste de glória e lembrança mais pela iniciativa do que pelo quadro geral e reunido. É a moldura de algo abstrato que uma perspectiva objetiva denuncia – feito pulga atrás da orelha, seja nas conclusões dos blocos ou em certa lucidez incompatível ao todo – não encontrar verniz, caso a peça venha a ser tratada como uma só, sem seus fragmentos. Relatos Selvagens, além de ter aberto a 38ª Mostra de Cinema Internacional de SP, é o típico filme que tenta se encontrar de várias formas, e atira para os lugares certos sem qualquer exagero ou aspecto digno de reprovação, mas, sabe a história do sujeito que de identidade em identidade esquece quem é, de fato? Então…
Ainda sobre paralelos e resgates sensoriais de nível atemporal, a loucura orquestrada por Fellini celebra os vários tipos de esgotamento comportamentais do animal social, sempre em grupo, em constante mudança deste social, sem especificar, contudo, se o mudar consiste em melhoramento ou atraso. Em Magnólia e Babel, de Paul Thomas Anderson e Alejandro Iñárritu, obras bem mais recentes, nota-se a antítese relativamente bem-sucedida aos esgotamentos nervosos de uma das comédias mais tradicionais da Itália, esbanjando nestes dois filmes, e agora em Relatos Selvagens, então, o também nobre exercício de expor os traços mais imutáveis do ser humano (compaixão, raiva, bom-senso – ou a falta dele –, instintos primitivos de todos os tipos) em um contexto bem mais realista e de caráter emergencial, como se o mundo fosse acabar após qualquer decisão que qualquer representante das menções acima possa vir a tomar.
Em 2014, com meia dúzia de situações absurdamente reais, ou sonoramente absurdas, o satírico cinema dos irmãos Coen casa com o cínico de Haneke na América Latina, e a boa – ótima – recepção das audiências e críticas mais diversas só pode revelar uma coisa: esse é o mérito de uma produção que contém, entre seus altos e baixos, entre o limite e o não limite, em tempos de politicamente correto, momentos de orgulho de certas fontes históricas, que o filme de Damián Szifron se apropria de atualizar, e se apropria muito bem; um antônimo bem construído de qualquer leveza que possa existir na sobrevivência humana de cada dia – ou noite.