Crítica | Ponto Cego
O roteiro de Ponto Cego, assinado por Rafael Casal e Daveed Diggs — que também atuam nos papéis principais, Miles e Collin, respectivamente —, nos apresenta o momento recente e dramático da vida de Collin, cidadão negro, subempregado, que vive na periferia, de um bairro negro de Oklahoma. A história se inicia no antepenúltimo dia da probation (espécie de condicional) de Collin. Por estar nesse período, para poder se ver livre de sua pena, ele precisa andar na linha, tendo horários estabelecidos, trabalhar, ficar abrigado e dormir em casa de reabilitação, proibido de sair do condado de Alabama e não se envolver em nenhuma atividade ilícita.
É facilmente percebido que o foco do filme é a tensão racial que os Estados Unidos ainda vivem, mesmo depois de tantos anos de história de lutas contra o racismo no país. Essa tensão é especialmente sentida nos estados do sul, os que mais demoraram a abolir a escravidão, culminando no provavelmente mais conhecido e estudado episódio da história americana, sua Guerra Civil (conflito armado entre os estados do norte e os do sul que se estendeu de 1861 a 1865). O interesse dos roteiristas e do diretor Carlos López Estrada é nitidamente demonstrar os contrastes sociais e econômicos entre as populações negra e caucasiana no país. Ao ir contando o caso da condenação, da probation e dos acontecimentos recentes na vida Collin, eles vão inserindo esse contexto que querem deixar claro. As cenas de abertura do filme, ainda nos créditos iniciais, servem não para outro objetivo, mas exatamente para isso.
Embora trate-se de drama, há tentativa de inserir certa comicidade na história. A hipérbole figurada pela quantidade de armas na cena em que Collin e Miles estão no carro de Dezz ilustra essa tentativa, bastante frustrada, na minha avaliação. Há muito pouco de cômico no longa. Aliás, há muito pouco de entrega de qualquer coisa nele. Embora cumpra seu papel como meio para entregar a mensagem “Olhem, ainda há muita diferença de vida entre negros e brancos por aqui”, o filme tem um roteiro fraco, com trama bastante previsível, atuações se não ruins, ao menos limitadas e se pode dizer o mesmo da direção. Algumas poucas cenas salvam a composição, destacando-se nesse sentido aquelas em que há maior tensão trágica (como as de brigas e discussões).
Tendo em conta que esse é o motivo de ser do longa, é interessante uma observação mais atenciosa à cena em que Collin está voltando para casa de reabilitação, um pouco à frente da anterior. Já no limite do seu horário de recolhimento, dirigindo o caminhão da empresa de mudanças em que está trabalhando, ele se encontra parado em um semáforo na rua Martin Luther King Jr – obviamente uma tentativa piegas de ironia inserida no roteiro. Nesse momento irá presenciar um fato que ficará reverberando em sua cabeça pelo resto da trama. Um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado (?!).
Ao tempo em que presencia diversas mudanças sociais e culturais, a personagem central da história está tentando se afastar do que é negativo e construir melhores perspectivas para sua vida (o que inclui sua vida amorosa). Seu sucesso nesse intento é bastante limitado, contudo. Esse parece ser um dos argumentos centrais da obra, a dificuldade que pessoas inseridas em tal contexto de limitação social têm em construir uma vida diferente. Pontos menores e diálogos breves, que podem parecer sem propósito, tentam demonstrar aquelas mudanças. Nesse sentido, atentar para os exemplos: da reinauguração da lanchonete Kwik Way; da festa de CEOs em que há fala mostrando que negros estão ocupando função nesse nível, mas que são extrema minoria; e, no mesmo sentido anterior, como também estão passando a morar em lugares economicamente melhores.
Outro breve momento que pode parecer sem propósito, mas é na verdade de certa profundidade, é a cena em que os dois amigos estão recolhendo quadros para uma mudança. Aqui se apresenta a questão de que indivíduos crescidos em tais condições de restrição econômica e educacional terão dificuldades de apreciar artes mais sofisticadas e de se dedicarem emocionalmente acima do superficial. Veja-se a dificuldade em apreciar quadros e fotografias que esses indivíduos apresentam. Na mesma cena que apresenta essa questão, é interessante olhar com afinco como eles não se permitem realizar o exercício de observar um ao outro. Parece que, de fato, pessoas em tais condições sócio-econômicas se comportam de tal maneira. Fica a interrogação: porque é assim?
“Agora você é um criminoso condenado. Agora você é isso até provar o contrário. Prove o contrário o tempo todo”. Esse é o argumento central do roteiro. Juntando ao já colocado anteriormente: um negro andando na rua no meio da noite é sempre um suspeito, um negro correndo na rua no meio da noite é sempre culpado, um negro condenando por um crime (por menor que seja) será sempre um criminoso condenado e terá de provar o contrário o tempo inteiro. É no mínimo muito difícil fazer um contraponto a isso, para quem já viveu na periferia (e aqui dá para deixar de lado a questão racial), a realidade se demonstra mesmo de tal forma. Sob essa perspectiva nos EUA, a mídia sempre vai tender a mostrar um policial com seu uniforme de trabalho e um negro culpado (correndo no meio da noite) com uniforme de presidiário, caso já tenha passagem pelo sistema judiciário.
A tensão social entre classes (e ambientes) pobres e classes (e ambiente) econômica e socialmente melhor estabelecidos é intensa e constante. A vida, assim, se apresenta como a arena em que indivíduos em um dos lados são incapazes de se colocar no lugar do outro, há medo mútuo, fortes esteriótipos e seus impactos negativos, a convivência no limite de sua possibilidade, por fim. A vida em ponto cego (blindspotting), a incapacidade de enxergar algo diferente do que seu cérebro quer ver primeiro. Numa figura dupla, seu cérebro vai enxergar apenas uma das figuras. Você olha mas não consegue ver a outra imagem que está lá. Mesmo que outra pessoa mostre para você a outra figura, é praticamente impossível ver as duas figuras ao mesmo tempo (e mesmo não ver sempre primeiro a figura que seu cérebro identificou sozinho inicialmente), a não ser com reeducação do cérebro (o que é extremamente difícil). Você não pode ir contra o que seu cérebro quer ver primeiro, se torna instintivamente cego. Uma vez tendo visto um negro espancando outro cara, você sempre vai ver primeiro o negro que espanca pessoas antes de ver qualquer outra coisa nele.
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Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.
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