Crítica | O Médico Alemão
Apesar de não conter em si um caráter tão explícito, logo no início de O Médico Alemão (Wakolda) a diretora argentina Lucia Puenzo utiliza os olhares sutis dos personagens para demonstrar que algo não está de acordo com a regra e a ordem. O cenário árido é incômodo às vistas dos personagens, tal como o calor que insiste em queimar a epiderme dos viajantes que cortam a estrada da Patagônia.
A trama acompanha a verídica história da família que atravessou o caminho de Josef Mengele (Àlex Brendemühl), conhecido como Todesengel, “O Anjo da Morte“, médico responsável pela área de Auschwitz-Birkenau e que fazia terríveis experimentos com crianças judias durante a Segunda Guerra Mundial. A lenda sobre ele reza que seu fim de vida foi peregrinando pela América do Sul. A trajetória do clã acaba tendo a verossimilhança aplacada graças à iluminação chapada, ao estilo de folhetins televisivos. Os tons de cor clara passam a ser um incômodo. A tentativa de guardar o mistério para a parcela do público que não conhece a história poderia ser um artifício melhor construído, e não o é graças a um descuido excessivo por parte da realizadora.
Pela natureza do seu trabalho de geneticista, Josef se vê na obrigação de indagar a mãe da família, Eva (Natalia Oreiro), sobre a condição da falta de crescimento da pequena Lilith (Florencia Bado). Além de ser o elemento catalisador da discussão dentro do filme, a garota também é a figura de mais fácil identificação com o público, por ser uma menina indefesa, injustamente presa a um estado de saúde precário. As figuras responsáveis por Lilith são reticentes quanto ao estudo de sua condição, não tendo qualquer receio de declarar isto ao médico – mesmo sem saber de sua história pregressa. Quando dá-se início aos exames, a desconfiança fica estampada no rosto dos membros do clã.
O vislumbre para a possível solução da crônica deficiência da menina não ilude muito os seus pais, mas faz a menina sonhar, de modo intenso, o desenvolvimento de seu corpo. A fabricação de bonecas pelo patriarca serve de paralelo para a construção de membros que são postos em seu lugar de modo mecânico, remetendo à artificialidade com que se “constrói” o novo corpo de Lilith. As cenas no interior dos armazéns, com mulheres montando os brinquedos de modo industrial, têm um tom um pouco macabro se comparado com o modo deveras otimista que a moça enxerga o mundo ao seu redor.
Apesar da premissa interessante, o roteiro de Puenzo pouco envolve o público, até por não haver crença de que Mengele pudesse ser um alguém livre de suspeitas ou um benfeitor. As atitudes da família em deixá-lo tratar a caçula são estranhas, considerando a paranoia do pai. O modo como tais questões são conduzidas tornam-se incoerentes, dado que a atitude e a postura do personagem não coincidem. Nem mesmo a justificativa de um possível desespero, que faria a família procurar soluções drásticas, torna a história mais palatável.
Nos instantes finais, Lilith é quem percebe que algo está enormemente errado consigo. Há mais atitude nela do que em seus predecessores familiares, mas sua reação é tardia. O médico prossegue seus experimentos e, ao final do filme, foge, tendo apenas uma mensagem pré-créditos que discorre um pouco sobre como Mengele prosseguiu usando crianças como cobaias de seus temíveis testes genéticos, cujos boatos apontam uma praia brasileira como última passagem do assassino incógnito. O filme falha em propor um caráter conspiratório ao público e tampouco comove, graças à fraca composição de background dos protagonistas. O Médico Alemão torna-se algo descartável principalmente quando comparado com o que poderia ter sido.