Resenha | O Eternauta II
Publicado entre 1976 e 1978, a continuação de O Eternauta, torna a história do Viajante da Eternidade ainda mais política, utilizando claramente a repressão da Ditadura Militar da Argentina como pano de fundo. O quadrinho trazido para o Brasil pela editora Martins Fontes reprisa a parceria do escritor Héctor G. Oesterheld com o desenhista Francisco Solano Lopez. Alias, a história sobre a composição da revista é, por si só, ainda mais aventuresca que o visto nas páginas dessa publicação.
Para entender essa nova aventura de Juan Salvo, até por conta do quadrinista Hector, alter ego de Oesterheld, ser um personagem recorrente aqui, precisamos de uma breve contextualização. Eternauta II foi publicado na revista Skorpio nos anos de chumbo da ditadura argentina, e a editora não falava abertamente sobre a condição dos artistas. Acredita-se que o roteirista, em determinado ponto da publicação, entregou os manuscritos para o desenhista em encontros clandestinos, já que ele era perseguido pelas autoridades militares que tomaram o poder na Argentina.
No país existe um termo específico para quem não tem paradeiro nessa época: chupado (pronuncia Chuparro), o caso de Hector. Para entender a gravidade da situação, além de ser perseguido, suas quatro filhas foram assassinadas. Além disso, Gabriel Solano López, filho do desenhista, foi detido em 77, e liberado por conta dos contatos do pai. Sua família na Espanha. Pontuar tais elementos explica muito sobre o cenário pós apocalíptico em que os personagens são inseridos logo no início dessa nova empreitada.
A narrativa começa em 1959, o contador da história tem consciência que publicou uma aventura em outras oportunidades (quebrando a quarta parede citando nominalmente as reedições inclusive). Esse argumento metalinguístico é encarado como paranoia e como conspiração dentro da trama, e pode ser lido também no cenário real. O que se percebe são os anos 2000 como terra arrasada.
A edição da Martins Fontes tem um bom prefácio de Fernando Ariel Garcia, que contextualiza as escolhas políticas do texto. A versão de O Eternauta 1969 com desenhos de Alberto Breccia já havia mais contornos políticos, culpando os países desenvolvidos pela miséria ocorrida na América Latina e nos demais países periféricos, mas aqui a condição se agrava. De vários modos, a nova história é mais angustiante que o volume anterior, pra além do salto temporal.
O cenário de pós apocalipse e a convivência com animais irracionais domésticos como parte do aspecto social dá a dimensão do quão selvagem era esse novo momento, um reflexo dos pensamentos de Oesterheld, um perseguido pelo regime autoritário e castrador. A história corre em cenários estranhos. Além disso, os próprios personagens mudaram, há Mãos que conseguem driblar a glândula de medo, Juan parece mais poderoso, quase que como um super-herói.
Em entrevista ao livro Bienvenido: Um passeio pelos quadrinhos argentinos de Paulo Ramos, a viúva Elsa Oesterheld descreve a sensação de ter que viver com a dor das perdas das filhas e marido como uma mutilação física. Por mais que o roteirista não soubesse exatamente qual seria seu destino enquanto rascunhava a trama, o texto acabou sendo bastante profético e ecoando o mundo real, e isso por si só torna a apreciação deste gibi em um evento triste e bastante poético.
O cenário de terra arrasada lembra filmes como Planeta dos Macacos e sua continuação malfadada De Volta ao Planeta dos Macacos, especialmente por mostrar um mundo arrasado, e com alguns seres humanos ainda com algumas regalias além do simples dia a dia destruído de um mundo que acabou ou está em vias de acabar. Fato é que a história soa confusa em muitos pontos, parece realmente ter sido escrita sob pressão, e pudera, exigir tranquilidade e sobriedade de um contador de histórias em situação tão limite é demais, e por mais que O Eternauta II não seja um dos trabalhos mais brilhantes de Oesterheld, há muitos momentos memoráveis e reflexivos. O final triste e pragmático para Salvo e Hector mostram o quanto as personas do escritor se confundem, as perdas irreparáveis e inevitáveis na família Salvo tem fortes paralelos com a tragédia dos Oesterheld.