Crítica | Anti-Herói Americano
A vida do roteirista e escritor Harvey Pekar sempre foi muito conturbada e repleta de momentos absurdos, para dizer o mínimo. Anti-herói americano, se iniciam nos anos 1950 com ele pequeno, tentando pedir doces. Enquanto todos seus amigos usam fantasias de heróis da DC, o garotinho está com roupas comuns, entediado, irritado porque não deram o que ele quer. Aparentemente o mundo está contra Harv, e não há nada que o faça mudar de ideia.
A história de Pekar é desimportante em sua premissa. Um homem intelectual, porém sem grandes credenciais, que morava em lugares ruins e tinhas hábitos pouco saudáveis. Esperto e espirituoso, mas sem uma história bonita e inspiradora para contar. Assim tanto a escolha de Paul Giamatti para fazê-lo como a participação do próprio autor fazendo a narração funcionam à perfeição para contar essa trajetória errante.
A dupla de diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini consegue traduzir em tela um estilo semelhante ao das tiras de quadrinhos underground que Pekar fazia. Seja na melancolia de seus dias e rotina, como no cinismo típico de sua personalidade e humor. Giamatti brilha ao mostrar um homem digno de pena, ordinário, com a cabeça grande demais para a vida mediocrizante do sujeito comum e que sofre com problemas de saúde constantes e irritantes. A música de Mark Suozzo pontua bem esses momentos melancólicos, com metais que lembram o jazz que ele tanto amava e que facilitam a percepção do esplendor americano do titulo original, retirado das revistas que ele publicava com seu amigo, o artista Robert Crumb.
As intervenções do próprio Harvey beiram o sensacional, aproximam o espectador do objeto biográfico de um modo bem mais simpático do que a maioria das apelações à quebra da quarta parede. Os momentos importantes da vida de Pekar são bem filmados, como o encontro dele com Crumb (interpretado aqui por James Urbaniak), recém chegado da Filadélfia. A interação deles de camaradagem e parceria é posta em tela de maneira singela, dado o total clima agridoce que o longa tem. As inabilidades sociais e o gosto por quadrinhos e música os une, para se tornar algo maior: a maior e mais elogiada parceria que o protagonista teve ao longo de sua carreira.
O filme possui momentos absurdamente legais, como quando a versão em banda desenhada de Harvey o agride verbalmente, para que ele aja de maneira mais firme em alguns pontos do seu dia. Seu alter ego age de maneira passiva-agressiva, como em uma versão mau-caráter do Grilo Falante do filme Pinóquio da Disney.
Em Bob & Harv: Dois Anti-Heróis Americanos, quadrinho publicado no Brasil pela Conrad, Pekar afirma que seus amigos gostavam de fazer parte das suas histórias. Entre eles, Toby Radloff se destacava. Seu papel de funcionário público de comportamento enfadonho é feito brilhantemente por Judah Friendlander, e isso se comprova quando o próprio Toby aparece em tela. Aliás, não só ele, mas também sua amada, Joyce Brabner (Hope Davis) também aparece e é introduzida de maneira abrupta, sem tato, como eram vistos os dias de Harv por ele mesmo, como frutos do enfado que é viver.
Há momentos hilários que retratam bem seu azedume, como quando ele, Joyce e Toby vêem a comedia besteirol A Vingança dos Nerds, com ele se ofendendo com o modo como os personagens são retratados e perdendo a paciência, se estressando com a simples representação caricata de boa parte da população dos EUA. Isso dialoga com seu receio de pessoas comuns e genuínas serem exploradas econômica e estilisticamente por grandes conglomerados, como se fossem animais ou cobaias em laboratórios. Por exemplo, as redes de televisão vem a Cleveland, verificam como são os residentes e fazem piada com eles o tempo todo, por conta do estilo de vida provinciano, semelhante ao que no Brasil é popularmente chamado de bicho do mato.
Anti-herói americano retrata bem a jornada caótica de Pekar, fazendo dele um bom exemplo de vida, ainda que não seja nada exemplar na conduta ou como figura idealizada. Mas sim de uma pessoa de verdade, com problemas reais, dificuldades comuns a toda sorte de gente, e que não se perdeu sequer em meio a fama. Pulcini e Berman fazem um trabalho bem poético, retratam com maestria o conteúdo diferenciado de Harvey, resgatam suas próprias falas e mostram que sua vida é um reflexo do seu pensamento pretensioso e egoísta. Há muita beleza na forma de abordar a vida de um ícone do underground ocidental, e muito carinho, sobretudo de Giamatti, que em tela e fora dela olha para Pekar com admiração típica de quem sofreu influência direta do artista, mostrando que a retroalimentação de cinema e quadrinhos é viva.