Crítica | Amores de Chumbo
Filmes sobre a época da Ditadura Militar normalmente servem para fazer comentários políticos contundentes. Exemplos disso não faltam, desde Eles Não Usam Black Tie que lida com questões trabalhistas e sindicais, até O Que É Isso Companheiro?, um thriller fantasioso de Bruno Barreto. Em Amores de Chumbo, Tuca Siqueira traz uma história sobre relacionamentos não resolvidos, apresentando um triângulo amoroso que deixou essa configuração de lado, por muitos anos, graças a uma mentira contada no passado.
A trama acompanha o aniversário do longevo casamento entre Miguel (Aderbal Freire Filho) e Lucia (Augusta Ferraz). Ambos se conheceram na época da repressão e estão juntos desde que o primeiro saiu da prisão política que lhe foi imposta. Após décadas, a escritora Maria Eugenia (Juliana Carneiro da Cunha) volta ao Brasil, depois de ter passado anos na França, para rever seus antigos amigos e aparar arestas com o passado. Maria e Miguel tiveram uma paixão avassaladora, interrompida pela prisão do homem, que acreditava ter sido abandonado por sua amada graças ao relato de Lucia. A grande questão é que essa situação é absolutamente discutível, uma vez que sua futura esposa guardava as cartas que Maria Eugenia mandava. Então, o marido busca resgatar os fatos ocorridos nos anos de chumbo.
Em um primeiro momento, Miguel e Maria revivem todo o ardor da paixão que deixaram represado por anos, dando vazão não só ao desejo que tinham um pelo outro, mas evidenciando a paixão que claramente não se apagou mesmo com o passar dos dias. Além disso, o claro envelhecimento dos seus corpos, a utilização dos nus dos personagens é feita de uma maneira quase poética, não hiperssexualizando em momento algum. Por dentro, o professor de sociologia ainda se acha jovem, revolucionário e pronto para enfrentar o sistema, mas aos poucos percebe que essa não é a mesma época de efervescência e luta política que ocorria quando era estudante. De certa forma, o pragmatismo do cotidiano o mudou e ele reflete boa parte do comportamento dos que antes se julgavam revolucionários e que ao envelhecerem se tornaram mais amenos e pragmáticos, mesmo que boa parte dessas decisões não tenham sido escolhidas por si, seu comportamento é bem menos incisivo do que antes.
Tuca mistura as temáticas de seus dois filmes anteriores, Vou Contar Para os Meus Filhos e Mesa Vermelha, no sentido de que estabelece uma historia que precisa da memória para ser viva, ao mesmo tempo em que trata de personagens com espectro político muito bem estabelecidos. Não à toa, o nome do filho do casal que começa o filme juntos chama-se Ernesto. Alias, o papel de Rodrigo Riszla brinca inclusive com as paixões adolescentes e com o discurso político, uma vez que é ele próprio que verbaliza o quão enfadonha pode ser toda a discussão política em torno da causa dos antigos militantes políticos na época da ditadura militar.
A historia por traz de Amores de Chumbo é de rara singeleza e ternura, e mostra como uma fantasia pode ser revivida mas sem descuidar do cotidiano do homem comum, do sujeito que claramente já não tem mais pique e saúde para viver os dias do passado. Seu desfecho é razoável e condizente com a realidade que aflige todos os brasileiros que viveram aquela época, e certamente acaba sendo um reflexo sentimental da vida política brasileira, em especial para quem brigou nos anos sessenta pela volta da democracia, depois de toda a movimentação política atual, que parece visar sempre tirar os poucos direitos que os trabalhadores têm.