Resenha | O Jogo da Amarelinha – Julio Cortázar
“Há livros que marcam a sua geração. Há livros que se tornam marca dessa geração aos olhos das seguintes. E há livros que nascem para ser eternos. Este, como poucos, pertence às três categorias. Publicado nos já míticos anos 60, O jogo da amarelinha teve imediatamente uma recepção extraordinária nas mais variadas línguas e latitudes”, Ari Roitman, que assina o prefácio da obra.
Com um prólogo assim, não é de se estranhar que leitores atuais – entre os quais me incluo – peguem a obra para ler com uma expectativa estratosférica. E isso é um de seus problemas. Todo o “folclore” criado ao redor do livro, incitam no leitor inúmeras ideias preconcebidas, indo da dificuldade da leitura ao deslumbramento com a obra. E iniciar a leitura com essa carga emocional acarreta basicamente dois sentimentos:
• Frustração: o leitor, mesmo apreciando o texto, sente-se um pouco desiludido pois queria ter gostado mais do livro (parafraseando aqui Calebe, do blog Os Espanadores).
• Logro: e esse mesmo leitor, sente-se enganado por tanta propaganda enganosa, com a certeza de que a obra foi valorizada em excesso, aclamada em excesso, analisada à exaustão; enfim, concluindo que não era “aquilo tudo que falam por aí”. Acrescente-se aí a ideia erroneamente disseminada de que a leitura não-linear sugerida pelo autor daria origem a uma história complemente diferente daquela resultante da leitura linear – indo do capítulo 1 ao 56, sem ler os capítulos prescindíveis. Na verdade, é indiferente, dá na mesma ler de um jeito ou de outro, pois a história permanece a mesma, apenas com mais divagações filosóficas.
Há motivos para ser assim. E acredito que mesmo aqueles que deram a ela 5 estrelas no Goodreads concordem com o fato de que o livro ficou datado sob alguns aspectos. Não há como negar a criatividade estilística do autor. Contudo, há 50 anos certamente o impacto no leitor era exponencialmente maior que nos dias atuais. Nem mesmo o conceito “inovador” de seguir uma outra ordem de leitura dos capítulos deixou de ser novidade há muito tempo, desde o advento dos livros-jogo, uma febre nos anos 80, cujo melhor exemplo (IMHO) são os da coleção Give Yourself Goosebumps, de R.L.Stine, um spin-off dos Goosebumps regulars. Vale lembrar que, nestes, a sequência de leitura dos capítulos altera, sim, o rumo e o desfecho da história.
No romance, o leitor segue as andanças de Horácio Oliveira. A obra é dividida em três partes: “Do lado de lá”, “Do lado de cá” e “De outros lados (Capítulos prescindíveis)”. Na primeira parte, ambientada em Paris (onde o livro foi escrito), acompanhamos o casal Horácio e Maga, e as reuniões com seus amigos, regadas com muita bebida, cigarros e jazz. Na segunda parte, Horácio está de volta a Argentina, onde reencontra um amigo, Traveler, e passa a conviver com ele e a esposa, Talita. A terceira parte é constituída pelos capítulos prescindíveis, aqueles que não fazem parte da leitura linear.
Mesmo lendo de forma direta, os capítulos oscilam entre eventos, digressões do protagonista e papos filosóficos entre os amigos, principalmente na primeira parte. Apesar de a segunda parte ter a cena que mais me chamou atenção depois do plot twist na primeira parte – a cena da tábua, que sei que desagrada a muitos -, ela é bem mais insossa. Tem-se a impressão de que foi escrita às pressas e sem muito empenho por parte do autor. Não é o nonsense, nem o absurdo de algumas situações, tampouco a (quase) certeza de que o narrador não é confiável que incomodam, mas sim a nítida sensação de que há história de menos para tanto texto – ou, em bom português, muita encheção de linguiça. O excesso de capítulos que não acrescentam nada à narrativa quase obriga o leitor a fazer uma leitura superficial, o que causa um certo desconforto e até um pouco de remorso: “Eu deveria estar me dedicando mais”.
Uma enorme quantidade de citações – a autores, filósofos, músicos, e outros – não chega a atrapalhar a fluidez da leitura caso o leitor não faça ideia do que se trata, mas deixa a impressão de que talvez a história pareceria mais interessante se quem lê-la souber do que se trata. Em outras leituras, eu eventualmente até paro a fim de procurar as referências. Mas, neste caso, são tantas que passaram batidas todas as que não fizeram sentido para mim. Possivelmente, muitas dessas referências eram assuntos “da moda” na época em que o livro foi escrito, sendo facilmente identificadas e contextualizadas pelos leitores de então.
Exceto pelos personagens principais, todos os outros parecem ser variações do mesmo. É quase impossível diferenciá-los, já que todos parecem ter a mesma voz narrativa. Se a intenção de Cortázar foi de construir personagens que deixassem o leitor incomodado por sua insipidez, sua falta de complexidade e sua chatice, seu objetivo foi atingido. É bastante tentador, quando conversam entre si, fazer uma leitura dinâmica até encontrar um parágrafo que volte a ser interessante. Em vários trechos, senti-me o próprio Charlie Brown em sala de aula, ouvindo sua professora: “Uon uón, uon uón uon, uon.” Nenhum deles consegue gerar muita identificação no leitor, pouco importando a este qual o destino dos personagens, o que certamente também dificulta a imersão na história.
Enfim, é inegável o valor da obra como experimento formal. Mas ter envelhecido mal atrapalha a apreciação dos leitores de hoje, além de sua fama de ser uma leitura difícil. Não é difícil, apenas perdeu seu poder de arrebatamento no passar dos anos.
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Texto de autoria de Cristine Tellier.
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