Crítica | Enchente
Antes mesmo de iniciar o documentário, os cineastas Julio Pecly e Paulo Silva utilizam a tela dos créditos para exibir um pronunciamento oficial, ministrado por uma autoridade local da cidade do Rio de Janeiro, apelando para que o cidadão de bem não saísse às ruas a menos em caso estritamente necessário, já que, nos idos de 1996, a cidade se encontrava em estado de calamidade. O pedido não poderia ser aceito por quem morava na Cidade de Deus, já que suas casas foram invadidas pelas águas, cuja fatalidade levou, inclusive, a vida de alguns moradores.
Através de imagens da televisão à época, o diretor tenta resgatar em imagens a dor e o desespero que seus vizinhos e família sofreram. Seguido a isso, mostram-se moradores do local naquele período, rostos que não conseguem esconder nem o alívio por estarem vivos, tampouco o amargor pelo infortúnio causado à comunidade.
Sem infraestrutura, comida, com os comerciantes sofrendo saques, os moradores pereciam – outra vez – no abandono por parte da prefeitura e das autoridades cabíveis. De positivo, há muito pouco. O que resta é a curiosidade de conferir os relatos por parte dos sobreviventes, que, mesmo perdendo grande parte dos seus bens, comemora momentos do resgate, como afirma um morador local ao conseguir salvar ao menos seu aparelho televisor da enchente que tomou a sua casa, ainda que o nível da água estivesse já na altura do tórax.
A maioria dos habitantes do local simplesmente jogava seus pertences fora, como em um rito desesperançoso de passagem, exibindo o fim de um ciclo para um começo do zero. O simples baixar das águas não faria os problemas simplesmente sumirem, tampouco traria de volta à vida aqueles que morreram. Todos tiveram marcas provindas da tempestade, mas apagar os sinais visíveis pela favela era o mínimo para que se começasse uma mudança.
Outras enchentes ocorreram e tiveram grande exploração midiática nos anos 60, inclusive em tons dramáticos transmitidos pelos programas de reportagens da época. O pouco feito pelas autoridades é o mote da fita, que destaca a total ignorância do poder público, marginalizando os homens com menos dinheiro e recursos, pois eram esses que, na cidade do Rio, ficavam desabrigados e perdiam tudo.
Mesmo entre os entrevistados, não há um consenso entre quem seria o principal culpado pelo acontecido, ou a razão maior. Desde destino até o desprezo das autoridades, todas as causas possíveis são levantadas, inclusive com registros do então prefeito Cesar Maia, mais uma vez reclamando que o governo federal e estadual não assumiam a responsabilidade junto com ele, tirando o atestado de autoria por aquele pecado de perto de si. Tudo isso dito pelo político que vê a cidade do alto, em um helicóptero, fazendo com que distância entre os dois mundo se mostrasse puramente visual.
A mensagem que Pecly e Silva passam escolhe um lado, mas não ignora o outro. A voz dada aos que acham que a culpa era dos próprios moradores não ignora a parcela de responsabilidade dos governantes. Mesmo que diante da tragédia anunciada e da ação praticamente nula dos que foram eleitos pelo povo, e que assistiam passivamente à morte daqueles homens.
A trilha instrumental, deixada ao final, traz um conjunto de cordas tocando Unforgiven do Metallica, para então revelar que, em 2010, outra enchente ocorreu, vitimando mais cinco pessoas na Cidade de Deus, e outras centenas no restante da cidade. Tudo fruto do imperdoável desprezo com o pobre, ainda muito comum na triste relação de chefes de Estado e população carente.