Crítica | O Cordeiro
Centrado nas montanhas da Anatolia, uma região da Turquia onde é exigida a circuncisão de seus meninos, que logo é seguida por uma festa de celebração, O Cordeiro (Kuzu) conta a trajetória de uma família que tem muitos problemas, tentando manter a estabilidade entre seguir as rígidas tradições do local e o equilíbrio emocional da família.
A história é bifurcada, mostrando essencialmente os dramas adultos, que variam nas trajetórias dos pais, em que o homem não tem condições de sustentar seu lar, tornando-se assim um ser inseguro, sem perspectiva de uma auto-estima saudável ou algo que o valha. Nem mesmo para repreender seus filhos com pequenas broncas ele consegue.
A história paralela mostra a visão agridoce e essencialmente fantasiada de Mert (Mert Tastan), o caçula da família, que vive sua infância em um lugar árido, mas que ainda guarda uma imaginação fértil, capaz de levá-lo às paragens mais incomuns e nonsense possíveis. Motivado por uma anedota contada por sua irmã mais velha, ele acredita correr perigo de morte caso seu pai não consiga um carneiro para realizar a festa que comemoraria a sua circuncisão, crendo piamente que caso eles não consigam, o próprio menino seria o prato principal do banquete referente ao rito de passagem.
Os preconceitos sociais típicos do vilarejo são tratados de modo anedótico, pelos olhos de uma doce criança, que ainda não tem autonomia para pensar sozinha, somente repetindo os maus pensamentos que ouve. O menino sofre na pele a diferenciação social entre as classes. Experimenta a estrada como uma criança Kerouac, sofrendo do vento, da fome, da neve e do bobo medo de ser sacrificado, após a brincadeira da irmã. Apesar de sofrer ações indiretas em sua rotina, o menino sequer tem noção de que ele e sua família sofrem uma exclusão social por méritos da desgraça de seu patriarca.
A lente de Kutlug Ataman é feita em grande parte da película no recurso de câmera na mão, no intuito de imitar a realidade presente nos gêneros documentários, e em quase toda a duração do filme ela acerta, uma vez que a verossimilhança é a tônica dos dramas mostrados em tela. O espectador é convidado a experimentar as mesmas sensações dos personagens, desde a depressão do pai, Ismail (Cihat Gök), o desespero da mãe Medine (Nesrin Cavadzade) e a docilidade de Mert, tendo em toda a sua ingenuidade e sinceridade as melhores tiradas, tanto as sérias quanto as cômicas, repletas de escapismo pueril e balanceado.
O desespero de Medine a faz recorrer a ações temerárias, que visam mudar o quadro em que vivem a custos altíssimos, quase nunca logrando êxito, tendo até sua ética discutida pelos circunvizinhos, piorada mais por ser aquela uma sociedade paternalista e que liga a honra às posses.
A volúpia pela ostentação junto aos vizinhos faz o casal correr atrás de dinheiro de modos nem sempre dignos, com a mulher penhorando seus bens e o homem pondo a venda o seu corpo, rediscutindo o conceito de mais valia. A humilhação paira sobre a cabeça da mãe, que se põe em posições dificílimas, assim como aos seus filhos, indo ao encontro da infiel, implorar que deixe seu marido.
O desespero de Ismail é tanto que ele chega a ficar foragido, sem dar qualquer sinal de vida ou assistência aos seus. A fuga dele é motivada por insegurança e vergonha, conceitos ligados demais ao machismo e chauvinismo típicos do lugarejo. O roteiro insiste em retomar o assunto a todo o momento.
Quando o fatídico dia chega, a vergonha maior é evitada com o serviço de banquete regado ao carneiro, bulgur e ayran. O ritual joga uma fina e frágil camada de hipocrisia sobre a igualmente frágil estrutura familiar, que por sua vez é sabiamente registrada pela câmera de Ataman. O final demonstra uma ruptura que se via necessária há muito, e que finalmente ocorre após os escândalos sexuais daquele que deveria ser o protetor da família, mas que na prática só fez envergonhar e maldizer os seus. O destino de Medine e Mert teria qualquer chance de não ser trágico, uma vez que estava longe daquele que impingiu temor e inseguridade em suas vidas.