Crítica | Mr. Turner
O Cinema está muito mais para a cozinha que para a pintura. É que assistir a um filme e analisá-lo remete, muito mais, ao exercício gourmet que as pinceladas e ao mero observar de um painel, até porque só observar Era Uma Vez no Oeste, por exemplo, não é o bastante: É preciso degustar a obra de Sergio Leone, aliás sua filmografia inteira se possível. Mas e o fazer Cinema? Nisso, talvez, seja possível juntar as duas artes. Cinema é tempero, é ponto certo, ou ponto propositalmente errado, pode ser ebulição, mas também é cor, é visual, é harmonia pictórica e o escambau. Tudo junto e misturado, no que compete aos grandes filmes, mas não no caso de Mr. Turner.
O filme de Mike Leigh é de uma beleza acachapante, tanto que é possível até sentir o cheiro de uma direção de arte e belezas naturais que explodem na tela. Mas se o Van Gogh de Robert Altman se assemelha ao valor estético de uma obra do genial pintor dos girassóis, o filme de Leigh, no erro de separar o homem do seu ofício, não consegue se apropriar ou sequer plagiar a graça de A Erupção do Vesúvio, de 1817, um dos quadros mais célebres de um grande artista. Grande demais para ser estudado a partir do homem, e não da riqueza que se esconde por trás da obra.
Quando Timothy Spall, soberbo e vencedor de Cannes pelo papel, olha pela janela de seu ateliê quente e terminal, em busca d’um raio de inspiração, a cena sintetiza, por ironia, a maior deficiência do filme: A incapacidade de olhar para dentro de si mesmo, do que comandava as mãos daquele pintor, e apontar a direção certa para o degustar de uma cinebiografia insegura, com muito para dizer, mas que se apoia mais na dialética não-crítica do mostrar. É o exato oposto de filmes como Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, que, por mais interesses que carregava, falou mais do que mostrou, e também naufragou, feito outro dos quadros de Turner. Cinema é equilíbrio.
Já a encarnação de Van Gogh por Maurice Pialat, em 1991, seja, talvez, o melhor “filme de pintor”. Acontece num espaço-tempo quando uma leve fidelidade aos fatos reais encontra uma condução perfeita, sem agressividades de nenhum tipo às vericidades do que é original, a fim de realçar tons e dar a outros um caráter mais abstrato, inclusive libertino. O bom gosto jamais é afetado pela vida inquieta do artista, mas pela interpretação livre tanto do homem quanto do seu ambiente – um trabalho europeu dos mais eloquentes, na razão de que qualquer arte submetida ao Cinema é naturalmente subvertida a sétima-arte, dado o poder de uma câmera diante de pincéis ou instrumentos musicais.
O filme de 2014 muitas vezes não resiste e entrega quadros em movimentos, tamanho o espetáculo dos planos guiando-nos por uma visita ao museu das vaidades. Sim, pois é triste ver como Leigh deixa suas presunções dominarem momentos onde a liberdade criativa confunde-se com a ostentação de um cineasta já experiente, inclusive de suas manias, mas que deixa o filme à mercê de suas pompas e outros vícios. Cineasta ama brincar de Deus, e Mr. Turner não tem tempo pra transar; ele precisa criar e pintar quem está na cama o esperando; o mesmo diz-se de Leigh: não há tempo oportuno para cozinhar propostas na exposição de uma vida bem vivida. O diretor de Segredos e Mentiras é rápido e foca no icônico, e quando gira sua câmera ao coração e às artérias do artista, o filme perde totalmente seu fôlego. Foca tanto no expôr, de novo e de novo, que esquece o sugerir, o caro e valioso elemento do “pode ser”. E do jeito que foi feito para ser, Mr. Turner só não é um filme acadêmico dos mais caros porque Leigh, sabiamente, deixa Turner falar mais do que fala por ele.
Eis a maior qualidade de uma cinebiografia, bem representada aqui. Seja como for, a meia hora final é como assistir, em slow motion, a alguém jogar baldes de leite em quadros de cores quentes. Nada se decompõe, mas a percepção emocional do “quadro geral” avisa-nos que, no contraste com a vida do pintor, não há muita energia restante na linguagem perto do fim. Estimular percepções é trabalho de mestre, triunfo que artistas do nível de Leigh ou do pintor britânico já atingiram, sem comparações de habilidade, mas pelo tempo de serviço, cada um em sua arte, cada um na sua época. O Cinema deve muito a Pintura, em especial ao pós-impressionismo de Gogh e Cézanne, mas pelo que de mais imensurável habite os painéis (nada gratuitos nas intenções) do nosso conturbado William (e que de fato se esconde), o visualmente belo Mr. Turner, tal várias teorias de comunicação e o cubismo cafona de Romero Britto, já nasceu ultrapassado.