Crítica | A Recompensa
Não é preciso ser muito observador para notar que A Recompensa tratará de um personagem vaidoso, profano, egocêntrico e muitíssimo cômico, visto que seu protagonista é mostrado, no primeiro momento, enaltecendo seu dotes — em todos os sentidos possíveis desta palavra. O Dom Hemingway de Jude Law é mostrado primeiro como um presidiário com complexo de grandeza, que não se submete sequer às ordens dos carcereiros, e que logo conquista a liberdade, não sem antes ser ovacionado pelos seus semelhantes, num episódio que pode muito bem ser apenas fruto de sua megalomaníaca imaginação.
A paleta de cores, num primeiro momento, é composta por tons muito vivos, como o vermelho, verde fluorescente e amarelo. As matizes remetem à euforia do ânimo do personagem-título e contrastam com a violência de suas atitudes. A rotina pós-prisão do anti-herói é marcada também por outros contrastes, visto que uma de suas primeiras ações ao sair do cárcere é procurar sua antiga vida, clamando por sua perdida família. Outra demonstração de destempero e descontrole é o porre que ele impõe a si, mostrando que seu corpo ainda é refém de substâncias viciantes e que sua alma necessita de desventuras etílicas e entorpecentes para se sentir plena. As cores predominantes dos cenários mudam de tom de acordo com o estado de espírito do personagem. Assim como as curvas femininas exibidas, os corpos mudam de estilo à medida que o personagem atravessa as suas “bad trips”, cuja abordagem da beleza das musas que o inspiram variam, exibindo as “chubbys” quando o protagonista está em momentos de dúvida existencial, e “modelos magérrimas” quando se encontra no auge da euforia.
O estilo de vida ostentativo típico dos bandidos americanos é muitíssimo parodiado pela trupe britânica. O visual faz referência a uma clara brincadeira com tal estilo. Essas alusões pioram com os diálogos, incrivelmente hilários, destacando os estereótipos presentes em filmes de assalto. Certamente a melhor construção da película é a persona de Dom, pois ele é um sujeito tão distraído que em determinados momentos sequer nota o que está bem à sua frente. Entretanto, este mesmo sujeito seria um especialista em um tipo de crime que requer muitíssima perícia e astúcia: arrombamento de cofres de alta segurança. Tudo o que envolve Hemingway, externa e internamente, é tão incrivelmente dissonante que se torna difícil acreditar em qualquer uma de suas ditas qualidades — excetuando o enorme carisma — até vê-las sendo cumpridas. Seu gênio é algo tão volátil e volúvel que ele é capaz de cometer as maiores ofensas e pachorras e ainda assim permanecer vivo e pronto para o trabalho. O embate “ideológico” que tem com seu possível empregador, Mister Fontaine (Demian Bichir), é de um tom nonsense ímpar, de cunho de baixo calão absoluto, mas surpreendentemente inofensivo. A resposta do contratante é igualmente jocosa, deixando claro ao personagem quem dá as cartas naquela situação.
A receita que Richard Shepard usa para entreter o espectador tem em sua essência seus trabalhos antigos como realizador de seriados. As gags de comédia são muito semelhantes às de sitcom, mas ainda assim são incrivelmente condizentes com a sétima arte, compondo uma ótima surpresa quanto à qualidade dos temas propostos. Sua direção de atores e escolhas de edição e fotografia são muito competentes. O roteiro é dividido em pequenas partes, como em esquetes, ainda que isto não seja tão facilmente percebido.
É curiosa também a desconstrução da frequente figura de galanteador exercida por Jude Law, que se entrega totalmente ao papel, sem receio de se expor fisicamente de maneira vergonhosa ou de finalmente assumir sua incômoda calvície. Sua carreira é pontuada por bons momentos, mas passa por um período de transição na qual não há mais tanto apelo de papéis que exigem a função de galã.
Irônico o fato do ladino personagem, ao tentar adentrar um local lacrado, lançar mão das formas mais rústicas de arrombamento. Seu modo de encarar a vida é tão errático que nem mesmo o seu trabalho ele consegue exercer, e nem a recompensa, por ter se calado durante todo o tempo na prisão — doze anos —, ele consegue obter. Mesmo quando se espera uma postura de redenção da parte dele, Dom consegue ser ainda mais louco, ofensivo e politicamente incorreto na forma de abordar seus antagonistas.
As coisas só passam a fazer sentido e voltam a dar certo na vida de Hemingway após ele ter uma epifania e perceber a mensagem moral que sempre ignorou ao longo da vida. Tal artifício poderia ter diminuído a potência do conteúdo da fita, mas não o fez, porque até a saída fácil de remição e salvação da alma é feita de modo estilizado. O roteiro do filme, que é o mais peculiar dos dirigidos por Richard Shepard, reverencia as produções de Guy Ritchie e Martin Scorsese, mas voltando as suas forças para a comicidade e nonsense.