Resenha | Lavagem
Lavagem é um quadrinho do autor paraibano Shiko, publicado pela Editora Mino, que se tornou depois uma obra multimídia, acompanhado de um curta-metragem de mesmo nome. A história dá conta da vida de uma mulher cujo passado é um mistério e que é pontuado por ilações de seu atual companheiro, Omar, um homem turrão, ignorante, que passa mais tempo cuidando dos porcos do que da casa e das pessoas que nela habitam.
A arte de Shiko é tão absurdamente gráfica que mesmo que esse sujeito tenha feições humanas e malévolas, ele não se diferencia tanto dos suínos que trata, sendo igualado em alguns pontos a um ser irracional e quadrúpede. A real riqueza da HQ mora na sua protagonista, uma mulher que sai da sua casa isolada no campo somente para ir a igreja, e no caminho comete atos que são julgados como libidinosos, que a fazem se culpar e ser culpada também pelas acusações de seu cônjuge.
Shiko ficaria famoso pela sua participação na iniciativa das Graphic MSP com a historia do homem das caverna em Piteco: Ingá, e certamente a escolha dos editores por ele se deu pela condição de sujeira e primitivismo que a história de Lavagem pressupõe. Todos os momentos que apresentam relações sexuais – e dada que é uma revista de tiro curto, há um número de páginas considerável dedicada ao sexo – não há um erotismo fácil e certeiro, ao contrário, é sempre carregado de culpa, quando não literalmente envolto em sujeira ou lama. É curioso como ao se abordar isso, haja também um apelo para que Omar e ela contraiam matrimonio, fugindo assim do pecado libertino da fornicação, e tanto no curta quanto na revista isso é acompanhado de uma pregação do pastor assembleiano Silas Malafaia, embora na revista isso não fique tão claro, mesmo com o texto transcrito literalmente. Talvez houvesse receio que o quadrinho fosse censurado ou processado, pois no curta-metragem ele inclusive aparece em tela. Essa função narrativa da pregação ajuda a inteirar os personagens com a entrada de um novo elemento, o sujeito que mudaria tudo.
Da parte da arte, os personagens humanos são cheios de hachuras. Isso dá a eles um aspecto que remete visualmente ao primitivo, à fase animal do pensamento. Nesse ponto, não é só Omar, mas a mulher e o visitante da casa também tem aspectos semelhantes quando agem de maneira paranoica. A figura da mulher é muito bem retratada, com um nível de detalhamento de expressões faciais e sentimentos bem fortes. Não é nem preciso que ela fale muito, pois seus gestos e atos falam por si só. As cenas de sexo, mesmo sujas, também parecem naturais, como se os amantes estivessem despejando ali mais do que tesão e pulsão, mas também tensão, quase como um descarrego.
O trabalho narrativo, por mais curto que seja, revela um bocado dos motivos da religiosidade causar tanto fascínio nas pessoas comuns. Se o humano, erudito ou não, tem necessidades sexuais, e se esse ser pensante se vê castrado o tempo inteiro, é natural que enxergue em forças superiores a fonte de algum gozo. E é nesse pensamento com toques freudianos que a personagem da Mulher vive, seja na fantasia que faz com o irmão profeta, ou no sujeito da balsa, que a afasta da casa que ela não gosta de habitar. A busca pelo orgasmo se assemelha a obsessão com o Apocalipse, com o fim do mundo segundo a mitologia cristã. Tudo isso é pontuado pela sujeira e violência poética da historia, aliado também ao sentimento universal da fome animal, aqui exemplificada pelo estado famintos dos porcos. A busca aqui é da Eva por seu Adão, não pela necessidade dessa Eva de ter alguém, mas por que ela acreditar que precisa ter alguém, já que toda sua criação tradicional leva a isso. Omar é só um canal de sua frustração, e possivelmente, seus próximos parceiros (ou parceiro único) também serão carregados desses mesmos defeitos. Possivelmente, a louca obsessão e a sanha assassina que ela tem podem não ter parado só no que se vê neste gibi, e a espiritualidade presente nesses atos pode meramente ser substituída pelo desejo de sangue somente. Assim, toda a religiosidade funciona ou como catalisador do mal (o que torna a HQ em algo profano para leitores mais conservadores) ou mero placebo, com a figura episcopal sendo somente um canal transitório da morte, o anunciante da ceifa de vidas por mero oportunismo e projeção mental.
O uso soberbo dos tons de preto, dos sombreados e hachuras torna Lavagem um objeto único. Shiko tem um domínio artístico poucas vezes visto, e a mistura que faz com as páginas duplas e o uso de letras garrafais para maximizar as sensações de violência e de chegada do mal assustam até mais que toda a profanação do subtexto. A história resulta em um quadrinho de tragédia familiar, calcada em uma questão violenta baseada no discurso fundamentalista religioso. Mas, como dito antes, poderia ser voltado para qualquer outra figura de autoridade. A ligação erótica com o Divino revela que os personagens têm uma auto imagem de muita pequenez, que é driblada em partes pelo vislumbre de um futuro longe daquela localidade, mas sem garantias de que essa não é uma historia cíclica. É essa dubiedade que torna a historia tão boa, pois a fuga de demônios talvez possa resultar num cair nos braços de outras criaturas ainda piores, sem dar a certeza se o mal é externo ou interno na mente da figura analisada por Shiko.
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