Crítica | Samba
O segundo filme da parceria entre Omar Sy e os diretores Eric Toledano e Olivier Nakache, do drama Intocáveis, e que foi exibido durante o festival de Toronto de 2014, não poderia ter saído em melhor sincronia com a discussão de seu pano de fundo: imigração. Recentemente, autoridades europeias foram questionadas em relação ao tratamento dado a imigrantes, principalmente aos refugiados de guerra, sendo essas indagações envoltas em polêmicas que beiram o higienismo cultural por parte de autoridades.
Dentre os países com histórico de lutas étnicas, a França se destaca por ser lar de diversos grupos africanos, em especial os argelinos, por depender destes grupos para execução de trabalhos de menor reconhecimento e, na medida dessa dependência, desprezar essas pessoas. País onde imigrantes são renegados a guetos, sem possibilidade de constituir cidadania, e sofrendo preconceitos diversos com índices de desemprego de jovens na faixa dos 40%, a terra do Iluminismo e lugar que outrora gritou “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” lança um olhar blasé sobre os conflitos que ocorrem nestes bairros argelinos — com uma última grande onda de revoltas ocorrida em 2007. Ainda hoje, movimentos da direita conservadora francesa, liderada pelo ex-presidente Nicolas Sarkozy, argumentam sobre a necessidade de regulação no livre trânsito pela União Europeia, e atribuem à imigração seus déficits e crises financeiras, atitudes as quais instigam a revolta daqueles que, apesar de franceses, carregam em sua ascendência o estigma do preconceito.
O filme inicia-se com a câmera passeando em plano sequência pelas áreas de um bonito salão de festas, depois o restaurante, a cozinha, o lavatório, e mostrando como as oportunidades aos imigrantes cresce em proporção direta ao nível de afastamento do público. Nesta cena, somos apresentados ao lavador de pratos Samba (Omar Sy). Como a dança, um imigrante senegalês que se encontra já há 10 anos na França, e nestes 10 anos pôde ver suas oportunidades de crescimento sendo retiradas uma a uma. Pessoas invisíveis vão se criando, de modo a tornarem-se irrelevantes. Quando em situação ilegal, devem evitar trens e locais de grande circulação de pessoas para fugir de prováveis batidas policiais. Seus traços étnicos são vistos com maus olhos, inclusive entre seus pares, e o conselho básico é tentar renegar suas origens até perder-se em uma caricatura europeia.
Neste contexto, devido um problema de documentação, Samba é detido e aguarda julgamento sobre sua situação no país, tendo como único auxílio a ajuda de voluntárias de uma ONG de atendimentos a imigrantes, entre elas Alice (Charlotte Gainsbourg, de Ninfomaníaca) em seu primeiro dia de atuação. Para ela, o conselho dado é não se envolver, porém a atração imediata entre Alice e Samba origina o romance que dá o tom a mudanças de perspectiva dos personagens. A relação entre o casal protagonista é delicada, pois Alice atua sob licença de seu antigo emprego, no qual sofreu uma espécie de burn out em uma crise nervosa, e desta forma tornou-se incapaz de sentir. Já Samba desde sempre percebeu que o envolvimento implica em perdas, com amigos e romances perdendo-se entre deportações e prisões.
O romance é construído sutilmente, de modo a torná-lo consequência da quebra de expectativa que a vida provê a esses dois personagens, e de modo a considerar uma interdependência emocional entre ambos. Esta dependência é construída por meio de um carinho desajeitado, o que se espera de pessoas que em situações habituais de vida nunca se encontrariam. Charlotte é uma escolha excelente para o papel, pois é capaz de apresentar uma cotidiana meiguice a sua personagem, exaltada principalmente pela atenção que a câmera dá ao seu olhar. É possível perceber sua quebra interna a partir dos gestos, hoje desajustados, e da indicação de uma pressão interna insustentável em seu semblante de decepção diante de qualquer interação. Evoluindo ao longo da projeção, Alice torna-se uma pessoa leve e capaz de rir do mundo e de si mesma, em especial quando em contato com Samba, que em sua honestidade e simplicidade reluta em compreender os rumos desse romance.
Com uma edição ágil, excelente elenco e bons toques de humor, a imigração e a solidão da vida são tratados de maneira leve, sem perder de vista a seriedade de seus temas centrais, usando o casal protagonista para traduzir a confusa e profunda relação entre seus representantes sociais. O Brasil encontra-se também representado, mesmo que de maneira indireta, no papel de Wilson (Tahar Rahim). Sedutor e alegre, torna-se amigo de Samba na busca por um emprego digno, incorporando o estereótipo do bom brasileiro em seu trato com as pessoas. É interessante este depoimento espontâneo sobre a nacionalidade brasileira na França, considerada como um lubrificante social em uma atmosfera tão segregadora. O país é também homenageado ao bom som de Palco de Gilberto Gil, e pela bem pontuada Take it Easy, My Brother Charles, de Jorge Ben.
É inevitável pensar como a criação de fronteiras, estas linhas imaginárias visíveis apenas em papel, torna acidentes geográficos tão maiores do que relações humanas, e conduz pessoas a condições determinísticas de subclasse mantendo-se pela esperança. Esperança, cantada por Jorge na visão que o primeiro homem pisando na lua se sentiu com direitos, princípios e dignidade. Exatamente como deveria ser.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.