Crítica | À Deriva
No terceiro filme de Heitor Dhalia, logo após o corajoso e particular Nina, e a aclamada adaptação dos quadrinhos de Lourenço Mutarelli, O Cheiro do Ralo, o diretor escancara sem receio algum sua relação um tanto vaidosa com o espaço, propriamente dito. Veja-se: Inúmeros cineastas se tornam íntimos da ambientação que propõem como se ela explanasse, antes das histórias, algo deles(as) mesmos, visto que esse não é um capricho existencial dos senhores e senhoras das câmeras, já que o poder da ambientação cinemática bebe muito das fontes teatrais mais antigas, pulsantes e jamais datadas. O Cinema, arte menina por ainda manter sua juventude praticamente intacta na celuloide, ou no frame digital, é um vórtice de influências, fato este que Dhalia como todo cineasta que se preze sabe muito bem.
Especificando: A forma como o corpo dos indivíduos submetidos a sua visão mais psiquiátrica e analítica se relacionam com os espaços, geralmente enclausurados e que vem a moldar o cosmos interior dos seres, habitualmente urbanos também, é a tônica da filmografia inteira até agora de Dhalia. Com À Deriva, escrito em parceria com Vera Egito, filme gostoso e sereno a ponto de achar-se lenitivo até aos males da perturbada protagonista de sua primeira ficção na telona, isso dramaturgicamente não vale como exceção em momento algum, em absoluto. O próprio título do filme incorpora a alma tanto da premissa quanto da abordagem da fita, tentando talvez atingir o patamar de ‘um filme completo nas intenções’, algo bastante raro devido as dificuldades de qualquer produção.
Se Nina e O Cheiro do Ralo evidenciam criaturas ancoradas no próprio pesar das suas existências humanas taciturnas e aviltantes, como se a escravidão por ser quem são e que carregam consigo no cortejo urbano desses corpos seja mórbida demais para os tais mortos encarnados que enquadrou, até 2009, nós encontramos pela primeira vez na obra do cineasta personagens verdadeiramente flutuando ao sabor do mercado das almas terrestres, numa leveza até mesmo possivelmente poética, em certos instantes. Em certas potencialidades dramáticas que podem serpentar entre os rumos de uma família branca, de classe média, feliz e contente, em férias furtivas num Rio de Janeiro quase paradisíaco, como retratado.
Uma célula praticamente inquebrável e sem motivos a tanto, começa então a rachar pela traição que o pai deflagra a matriarca. Um ímpeto, como num romance moderno de Ian McEwan, flagrado então pela filha deles em meio ao turbilhão hormonal da mesma, na típica passagem da adolescência para a chamada “adultescência”, que enfrenta. No mínimo curioso poder-se usar a palavra “típico” quando estamos nos referindo a uma obra de Dhalia, mas aqui o termo cai ironicamente como uma luva, e numa progressão digamos bastante crescente quanto a isso, criando dimensões sensíveis na maioria das cenas, junto a situações de fato gostosas a percepção de quem se propõe a investigar uma família além das cortinas. Além das fechaduras.
A família, então, passa a não saber mais para aonde ir durante e após essas férias frustradas. Aonde chegará, à medida que todos os seus segredos são expostos. Começa então a desmoronar, feito castelo na areia atingido pela maré que avança. A paisagem litorânea e extremamente tropical começa, na metade do filme, a surtir um bacana (e convenhamos, esperto) elemento irônico na trama de reviravoltas, como se a beleza de uma praia brasileira fizesse parte, a partir de certo ponto, do charme farsesco de comercial de margarina na mesa da cozinha que a família tradicional brasileira, moralíssima, passa a não conseguir manter mais diante de situações subversivas, e de toda uma normalidade prévia que um seio familiar ostenta – por pouco tempo, aqui, afinal, esse ainda é um filme do diretor de O Cheiro do Ralo.
Nisso, o universo de caos, incômodos e letargia de Dhalia é desenvolvido através do olhar cada vez mais desconfiado da testemunha do adultério, a jovem Filipa (Laura Neiva, atuando no mesmo nível da boa atuação coletiva aqui presente). Repleto dos arranjos mais pesados e mais dramáticos do realizador, essa perspectiva autoral começa, pouco a pouco, a assaltar a história e nela infiltrar-se, sorrateira, tal a bela da tarde efêmera e desestabilizadora, e tudo aquilo que veio antes na história conturbada de uma família igual a tantas outras. À Deriva é a ascensão mais do que válida a uma maturidade observatória de Dhalia que, nisso, reconhece também que, na sua visão, o peso de certos temas e a leveza inicialmente ambientada, já comentadas acima, pode sim coexistir tranquilamente bem, ambas enriquecidas assim por uma simples panorâmica à beira-mar, por exemplo, enquanto pai e filha se abraçam buscando uma provável redenção mútua no que cabe a existência desse belo drama nacional. Porventura o melhor de seu realizador.
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