Crítica | Ladrões de Bicicleta
Em 1948, a Europa, e principalmente a Itália, estava sob a sombra do pós-guerra: viúvas e mães sem filhos, jovens feridos, pobreza, desemprego e a memória ainda muito fresca do nazismo formavam a paisagem. A Segunda Guerra representa, culturalmente, um marco tão importante não só pelo número concreto de mortos e feridos, mas porque simbolicamente foi o fim de um projeto, o fim da ideia da Europa como marco da civilização e progresso, o fim de um mundo que acreditava que ciência e racionalidade só podiam trazer o bem. No centro do velho continente havia mais barbárie que nos confins da África, foi a grande descoberta do povo europeu.
Se é um novo mundo, é necessária uma nova arte e, consequentemente, um novo cinema. O pós-guerra marca o início dos movimentos de modernização que culminariam nas diversas “Nouvelle Vagues” ao longo da década de 60 e na liberdade de diretores como Federico Fellini e Ingmar Bergman. Na Itália essa mudança vem com o nome de Neorrealismo.
O Neorrealismo, como a maioria dos “movimentos” do cinema, não era um grupo organizado ou unificado, mas sim um momento da produção italiana em que diversos cineastas, cada um de forma individual, pareciam caminhar na mesma direção. Embora não exista um manifesto, ou um conjunto de regras, algumas características marcam os filmes neorrealistas: eles saem do estúdio e passam a filmar em externas, trazem personagens “do povo”, buscam olhar para os problemas sociais da Itália da época, trabalham com frequência com não-atores. A ideia é, como o nome do movimento indica, captar a realidade o máximo possível.
Ladrões de Bicicleta é tido como um dos filmes marcos do Neorrealismo e, a princípio, ele é de fato um ótimo exemplar. O filme narra as dificuldades que um operário desempregado enfrenta para sustentar a família, é quase todo filmado em externas e o protagonista é interpretado por um verdadeiro operário de fábrica. Mas são inovações apenas de produção e o longa de De Sica permanece, em narrativa e linguagem, um filme clássico.
O que não quer dizer que não seja uma obra prima do cinema. Mas há, efetivamente, pouca novidade em Ladrões de Bicicleta, ainda mais quando comparado com os outros filmes significativos da época, como Roma, Cidade Aberta e A Terra Treme. A narrativa acompanha Antonio, um operário desempregado que encontra uma possibilidade de emprego como pregador de cartazes, mas que logo no primeiro dia tem sua bicicleta roubada. Mas De Sica, ao contrário do que faziam seus contemporâneos, não se satisfaz em deixar a realidade e a miséria falarem por si só, ele é didático, emotivo e aproxima seu filme de um melodrama: a cena no restaurante não é realista, é milimetricamente construída para emocionar o espectador.
Mesmo o momento em que alguma ambiguidade moral entra em cena e Antonio ensaia ser um anti-herói (o anti-herói, o bandido charmoso e sem moral, seria o personagem preferido das Nouvelle Vagues) a coisa foi contada de tal forma que o protagonista não chega nem perto de ser um ladrão, ele é uma vítima, um mártir. Os personagens de De Sica não são figuras anônimas da massa romana, como nos filmes de Rosselini, mas personagens “especiais”, heróis de suas próprias histórias, mesmo que estas sejam tristes, como em qualquer narrativa clássica.
O Neorrealismo é uma resposta a um mundo de menos certezas, menos preto no branco. Roberto Rosselini mata sua protagonista nos primeiros quinze minutos de filme, Visconti sequer elege um personagem principal em A Terra Treme, a cidade e a multidão invadem seus filmes. Mas não Ladrões de Bicicleta. O rosto de Antonio aparece em close diversas vezes, assim como o da criança, mas a miséria generalizada do país não aparece, o protagonista é construído como um ser azarado, um sofredor individual, e não como um exemplo de uma situação maior.
Ainda assim, Ladrões de Bicicleta é um lindo filme, De Sica conduz sua história com delicadeza e simpatia. Há humor e a cena final é, sem dúvidas, um dos grandes momentos da história do cinema. É um drama muito bem feito, mas o tema e a forma de produção são apenas uma fachada de novidade, essencialmente é um filme clássico, ainda mais quando colocado ao lado de obras revolucionárias. Um dos grandes momentos do cinema, mas não um momento que mudou seus rumos.
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Texto de autoria de Isadora Sinay.