Maior que uma homenagem, Alta Fidelidade é uma jornada de amadurecimento.
Em dias de isolamento social, uma série que é um afago para os corações obcecados por música e assumidamente depressivos. Alta Fidelidade, o cultuado livro do Nick Hornby que já havia virado um filme dirigido por Stephen Frears acabou de ganhar também sua série. Lançada no último fevereiro no Hulu,canal de streaming da Disney, essa nova versão reverencia o romance e ao mesmo tempo o filme de várias maneiras, fazendo uma atualização considerável na tentativa de contar uma história mais atraente e palatável para um novo público.História que ainda conversa com muita gente, que se vê representada nesse mundo e por alguns de seus personagens,crentes que a cultura pop é o que existe de mais importante na vida. A série é capaz de agradar quem faz seu primeiro contato com Alta Fidelidade, mas funciona muito melhor para os adeptos da filosofia de Hornby em sua obra mais aclamada.
Ao longo dos últimos trinta anos, Rob (Fleming no livro e Gordon no filme) ganhou status de ícone entre uma juventude fissurada por rock e mal ditava sua miséria pessoal às músicas que viveu escutando e às letras tristes que moldaram sua personalidade. Sem olhar para o próprio umbigo, prega que esse consumo é o que está de fato consumindo as almas de milhares de adolescentes no mundo. Para ele, a culpa da tristeza massiva é da indústria cultural e as pessoas, engolidas por esse fenômeno, nem desconfiam.
Exaltado por esses vícios e exageros, mas estagnado no mesmo emprego sem qualquer perspectiva de melhora, ruim de grana e persistindo em culpar os outros por tudo de errado em sua vida, não há culto que se sustente.Virou consenso que esse protagonista é o tipo de arquétipo que precisa ser superado. Já que ele não apresenta qualquer redenção em sua trajetória. Rob, começa a história sem entender porque a Laura, sua última companheira o deixou. Durante esse percalço todo ele até descobre, mas não toma qualquer atitude a respeito disso. E termina com Laura mesmo assim, depois de prejudica-la bastante.
Esse dilema está no coração da nova roupagem de Alta Fidelidade. Como os “desvios de caráter” tratados no filme de vinte anos pegam mal, a produção viu na segunda adaptação uma oportunidade de mudar as coisas. Fazer do protagonista um melhor exemplo (?!), mas ainda problemático. Então, a ideia da mudança mais significativa que esse reboot apresenta: Rob agora é uma mulher do Brooklyn, vivida por Zoe Kravitz. Menos explosiva, mais simpática e igualmente paranoica e apaixonada por seus discos. A Rob da Zoe também não se redime. Se mostra egoísta e não tem medo de ferir os outros, mas não é nem de longe a bomba atômica que John Cusack encarnou um dia.
Proprietária de uma loja de discos, ela está passando por uma fase turbulenta no amor. Seu relacionamento acabou de maneira traumática e seus últimos dias andam terrivelmente angustiantes por não conseguir emplacar mais nada após esse término. Teve oportunidades, conheceu (e está conhecendo) gente, mas continua perdida. A coisa mais charmosa na história ainda é esse ponto: quem nunca teve o coração partido a ponto de isso destruir completamente sua rotina? Te fazer evitar trabalho e amigos? Rob passeia por todas as esferas de sua vida, relembra os traumas de relacionamentos anteriores, sua relação com a loja e com seu irmão, para chegarmos até o que importa: o quanto esse problema significa pra ela, e claro, isso é realmente um problema?
Essa abordagem é mais próxima da história original de Hornby. Ao se aproximar mais de Rob como alguém que está emocionalmente quebrada e ao invés de partir para uma guerra contra o EX, ela vai se conhecer melhor. E fazendo isso ao longo de alguns episódios, permite que acompanha a série também se aproxime de Rob e do seu universo. O próprio capítulo que vai contar o background de Simon, ex-namorado dela e hoje atendente de sua loja é uma excelente adição e enriquece o vínculo com tudo o que se passa na trama.
Muitos tributos são prestados. Coisa que só tem no livro é citada, coisa que só acontece no filme é citada e situações que acontecem nos dois também… As vezes indiretamente e as vezes – palavra por palavra.Até o figurino acaba sendo revisitado. Zoe Kravitz é filha de Lisa Bonet, que faz a Marie De Salle no filme… Mas esses sinais que são distribuídos ao público não são o que define a nova série.A personalidade da protagonista e as pessoas à sua volta são praticamente um começo do zero, claro, com o devido respeito àquilo que é sua fonte.Simon e Cherise são Dick e Barry em sua essência, mas ao serem traduzidos para o ano de 2020 e com a possibilidade de serem melhor trabalhados, eles oferecem mais.
Para o piloto, a série apresenta na direção o ex-baixista dos Lemonheads, Jesse Peretz que previamente já havia trabalhado numa outra adaptação de Juliet Nua e Crua enquanto quem dirige a maioria dos episódios da série é Jeffrey Reiner (responsável por alguns episódios da segunda temporada de Fargo). É importante que sejam essas pessoas trabalhando em Alta Fidelidade porque é o que ela tem de melhor para oferecer é a imersão e intimidade com as ruas do Brooklyn, com os bares visitados, com a música pulsante, a loja de Rob e com as vidas das pessoas que circulam por ali. O toque de rock que eles trazem possibilita essa magia, especialmente, num momento em que as pessoas se encontram limitadas no que diz respeito a ocupação de espaços.
É difícil trazer um clássico para conversar com outra geração, e até arriscar passar através dele uma nova mensagem também. Mas Alta Fidelidade consegue, desperta nostalgia e ao mesmo tempo também projeta as questões de numa nova geração, sem abrir mão do que tinha de melhor. Ao recontar tudo isso em paralelo com sua personagem principal, buscando essa nova perspectiva, é a história que amadurece. Se revela como o já que foi, sem arrependimentos, mas ainda o que é e tudo o que pode vir a ser. Conversando com jovens que tem uma relação 100% digital com a música ou sequer pisaram numa loja de discos na vida. Mas com certeza, já levaram um pé na bunda e se afogaram numa música lamentosa.
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Texto de autoria de Gabriel Caetano.