Quando se assiste a O Resgate do Soldado Ryan, pela primeira vez, há algo de especial no ar. Demorei muito, todavia, para enxergar várias nuances do filme de Steven Spielberg, que completa vinte anos em 2018, além da clara propaganda política pró-Estados Unidos. Isso porque o patriotismo pingando da tela é o preço pelo melhor trabalho de direção da carreira dele, impecável, como se a simbiose “política-arte” tornasse-se subitamente inevitável num legítimo filme de ação como pouco já havia sido feito até então.
Desta intenção, deste ensejo do diretor de tantos clássicos infantis e de suas famosas e “descompromissadas” aventuras entre alienígenas, dinossauros e arqueólogos revolucionando para sempre o mundo do entertainment (Spielberg nasceu no lugar certo e na época certa, algo muitas vezes imprescindível para um gênio dar certo), surge a curiosidade genuína de um Cinema que se leva mais a sério, em filmes bélicos como A Lista de Schindler ou que usam apenas as agruras de uma guerra como pano de fundo para algo além dela, tal O Império do Sol ou Lincoln. Spielberg, judeu, é um soldado que veste histórias e celuloide enquanto empunha sua ousadia e seu toque de midas por todos os gêneros possíveis. Reinventando-os e envernizando-os, quando precisa.
Em 2001, ano extremamente traumático para a população dos EUA, surge uma das produções mais caras da história da televisão norte-americana, e como resistir a uma minissérie da HBO cuja supervisão é feita por quem lembrou o mundo, no final dos anos 90, o peso e a dor de um conflito interminável a quem dele participou? Band of Brothers acerta por já começar retirando todo o glamour de um conflito extremamente complexo (e não simplificado aqui), o qual hoje os mais jovens só conhecem através das narrativas de jogos de videogame cada vez mais realistas – apenas nos gráficos, na maioria das vezes. Quando a tal irmandade já recrutada assiste numa tela um romance da época de ouro de Hollywood com Clark Gable, logo nas primeiras cenas do primeiro episódio, fica claro que não haverá espaço para a doce fantasia neste universo de ganhos baseados em perdas irreparáveis. Tão cruel, e tão custoso.
O que realmente impressiona de fato, o que tomou o mundo de assalto, é a dimensão ambiciosa da história da minissérie. Como sua reprodução mais que fiel a dinâmica de um período histórico, alvejado por um comportamento humano característico, se dá de forma irresistível ao longos de dez deliciosos episódios. Como o companheirismo é sentido e cultivado numa trama onde o coletivo é totalmente mais importante que o valor individual não de cada capacete, mas do que há debaixo de cada capacete. Não haveria portanto esse grande conto baseado no livro de Stephen E. Ambrose sem o maravilhoso aprofundamento dramático das relações intensas de cada soldado: Homens esvaziados de inocência e tranquilidade numa época inflada por tragédias de escala mundial nunca antes sequer afrontadas, como transparece o destemido tenente Richard Winters, interpretado com maestria por Damian Lewis, da série Billions, da Netflix.
São inúmeras as interações entre iguais cem por cento contextuais a um cenário de pura desolação e condições acachapantes a qualquer espírito que, sem apoio, padece aquém de qualquer treino, senso de honra ou congratulações que poderiam abater a famosa Companhia E (Easy Company) do 2º Batalhão do 506º Regimento de Infantaria Paraquedista do exército dos Estados Unidos. A moral aqui é absolutamente clara: Não há guerra de um homem só, como provam vários bons filmes recentes que ainda tentam se destacar nesse âmbito histórico, como os fantásticos Cartas de Iwo Jima e A Conquista da Honra, dobradinha de Clint Eastwood sobre o mesmo combate envolvendo americanos e japoneses.
Contudo, na minissérie de Spielberg, personagens e ambientação servem para um momento ainda mais perigoso do século XXI, e que envolveu a invasão do próprio cafofo de Adolf Hitler, logo no auge da segunda grande guerra. Com uma missão absurda e imprevisível dessas, praticamente suicida como todos sabiam e sentiam por baixo de seus insígnias imundas, a vasta calmaria das nuvens tampouco seria o único refúgio antes de qualquer operação contra o sistema avançado do führer alemão, dado os bombardeios que aguardavam os soldados antes de saltarem das aeronaves – Hitler era muito paranoico com ataques aéreos e se preparava de toda forma possível contra eles, um a um.
Band of Brothers avança para ser um enorme estudo de personagem coletivo, mas equilibra sua narrativa contando, em paralelo, uma importantíssima virada no tabuleiro da história mundial, lotada de reviravoltas, e ainda deixa espaço para impagáveis depoimentos de veteranos que criticam a própria guerra, relembram suas participações verídicas e a auto vivência compartilhada e inesquecível de cada um: Sobreviventes testemunhais de um conflito desta magnitude. “Como você se prepara mentalmente pra isso?”, comenta a certa altura um ex-soldado emocionado. Nisso, a realidade acha outro jeito de se infiltrar na ficção e elevar o jogo.
Logo, não conseguimos mais deixar de se envolver com o drama e a violência que assombram a peleja do bando, muito antes até de descobrirem o que lhes esperavam e a gravidade da missão que mudaria o sentido das suas vidas. Aos poucos vamos tomando consciência, junto com eles, que estava longe de haver apenas fidelidade militar e vitórias na trajetória da irmandade, e seus oficiais de guerra. Jamais divididos entre suas motivações, mas sempre entre o chão e as nuvens, sobrevoando territórios franceses, belgas e alemães nos seus aviões de portas abertas, convidando ao terror que fazia subir a todo vapor.
Tal atmosfera crua de tensão ronda cada episódio e suas sequências feito uma promessa constante de frustração, nos levando a uma experiência de compromisso militar literal, muito bem integrado a causas maiores e muito antes dos acontecimentos fatídicos da década de 40 serem-nos apresentados, como o Dia D na Normandia, na França. Uma operação que a minissérie ousou recriar (muito bem e com exímia empolgação), e desta vez sob a ótica ansiosa e cada vez mais desesperada dos combatentes que não vinham pelo mar, mas faziam descer do céu, conscientes que não eram a prova de bala tal seu patriotismo, sua honra e seu senso irrefreável de dever cumprido.
Infelizmente, entre tanques, paraquedas, emboscadas e planejamento tático em pleno campo de batalha, a série parece ter sua dramaturgia impecável prolongada um pouco mais que o necessário em certos momentos, principalmente a partir dos últimos episódios, por mais prazeroso que seja a aventura desses pobre homens do começo ao fim; épica, em todos os sentidos. Enquanto documento ainda que com inúmeras liberdades de ficção, Band of Brothers tem seu espetáculo operando em prol de uma realidade destemida e simbolizada por grandes e pequenos instantes que certamente mudaram o curso do milênio, e do que estava por vir.
Todavia, mesmo longe de atingir e traduzir a sensação de loucura generalizada de um Apocalipse Now, podemos sentir o pavor e a pólvora exalando das cenas, sendo mais que convincente sobre o stress e o medo que se infiltrava no ar respirado por aqueles soldados e tenentes expostos e sobrepostos a um crescente endurecimento coletivo, progressivamente encarados como armas ambulantes num xadrez onde só há peões resistindo sob uma perturbação onipresente – ênfase aqui sobre isso no terceiro, sétimo e nono episódio, talvez os mais simbólicos e construtivos sobre a psicologia da guerra, e provavelmente os melhores e mais completos.
De certo longe de figurar como uma versão estendida de O Resgate do Soldado Ryan, o que não se justifica pela exploração crítica ainda mais aprofundada do extenso combate em questão, a produção televisiva tem uma parte técnica invejável, ostentando imagens e sons que não devem em nada ao filme de Spielberg – em determinado bombardeio, um soldado fica ligeiramente surdo e a mixagem sonora volta ao normal aos poucos, sempre a favor da já mencionada experiência realista tão pretendida, e tão bem atingida, de várias formas, na primeira grande produção para TV do assumidamente revisionista século XXI.
Uma das mais caras minisséries já realizadas (125 milhões de dólares, ao longo de 9 meses de filmagens), a empresa para retratar os horrores da maior guerra da humanidade (até hoje) pelo ponto de vista de um batalhão de paraquedistas rumo ao Ninho da Águia, fortaleza de Hitler no extremo sul da Alemanha, jamais expõe ou adula em gratuito os seus heróis americanos que voltaram ou não para casa, e ao invés disso, acerta mais uma vez deixando o horror e os esforços sobre-humanos os quais passaram expressarem um verdadeiro motivo de orgulho que os episódios pode exalar. Mais um triunfo narrativo para Spielberg e aos inúmeros diretores que comandaram o projeto, ambicioso como poucos, e nada devendo, ao todo, aos grandes “filmes de guerra” da história do Cinema mundial. Samuel Fuller ficaria feliz.