Imagine que você é uma pessoa desajustada, marginalizada pela sociedade e especialista em aplicar golpes para ganhar algum dinheiro e sobreviver. Agora pense como seria se, um dia, você visse alguém exatamente igual a você se matar sem motivo aparente. Em algum momento – disposto entre o momento chocante de ver alguém se atirar na frente de um trem e o de cair a ficha de que você e a suicida possuem exatamente a mesma aparência –, você pensaria em como levar vantagem com a situação.
Para um órfão versado na arte do trambique, golpes e pequenos furtos, a falsidade ideológica não chegaria nem a ser um desafio. A pessoa que se matou era exatamente igual a você, exceto talvez pelas roupas visivelmente caras e o ar grã-finesco. O plano é simples: trocar de identidade com a indigente morta, averiguar a vida dela e seguir vivendo a rotina daquela pessoa pelo resto da vida ou, no mínimo, liquidar tudo o que há de valor em seu inventário antes que percebam que a pessoa limpando as contas e vendendo os bens não é a verdadeira dona da grana.
Acima, estão resumidos os primeiros 15 minutos do primeiro episódio de Orphan Black, série da canadense BBC que estreou em meados de 2013 e que vem sendo um sucesso de crítica desde então. Antes de terminar o primeiro episódio, ainda, você vai descobrir que a ligação entre a indigente suicida e a personagem principal da série é muito mais íntima do que a de simples irmãs gêmeas. Sarah Manning, a protagonista, e Elizabeth Childs, a suicida, não saíram do mesmo útero, não cresceram no mesmo ambiente e ainda assim são geneticamente idênticas. Ambas as personagens são frutos de uma experiência obscura de clonagem humana, e elas não são os únicos produtos deste experimento. À medida que vai conhecendo os outros clones, Sarah descobre que alguém está caçando-a e precisa evitar que o assassino chegue até ela, sua família adotiva ou sua filha biológica.
Ir muito além do que relatei na sinopse poderia prejudicar a experiência com a série, portanto me limitarei a contar estes aspectos da trama, que é umas das melhores séries às quais assisti recentemente. Uma mistura de drama existencialista e ficção científica, Orphan Black dosa muito bem os momentos de ação e os pontos dramáticos regados a muita reflexão das personagens e do próprio espectador no decorrer dos 10 episódios que compõem esta primeira temporada da série.
Tatiana Maslany, a atriz que interpreta a personagem principal da trama, trabalha em suas personagens em um nível inacreditavelmente alto, com um roteiro extremamente desafiador para qualquer artista em sua posição. Durante a série, Maslany vive vários personagens diferentes e consegue, de forma extremamente competente, estabelecer e dar vida a cada um deles de uma maneira singular e orgânica. Os trejeitos de cada personagem são únicos e não se misturam nem quando um dos clones tem de se passar por outro. Assim, é visível quando Sarah vai a um evento se passando por Alison, por exemplo. Em tela, é possível distinguir cada personagem com considerável facilidade seja pelo jeito de falar, pela forma de andar ou pela postura de cada uma das diversas personagens interpretadas por ela. Um show à parte!
Os personagens secundários também se desenvolvem bem, apesar do pouco espaço que possuem na primeira temporada. Felix Manning, o irmão adotivo de Sarah interpretado por Jordan Gavaris, destaca-se dos demais pela presença em cena e por maneirismos totalmente caricaturados. Seu personagem, um michê homossexual, participa bem da trama e ajuda bastante a personagem principal na busca dela por respostas. O personagem de Gavaris é divertido e leve, contrastando com a situação para a qual é arrastado. Outros que também aparecem bem durante os episódios são os personagens de Dylan Bruce e Kevin Hanchard, responsáveis pelo clima mais pesado e sombrio: Paul Dierden e o Detetive Arthur Bell (interpretados por eles, respectivamente) buscam entender quem é a jovem Sarah e por que ela é tão parecida com Elizabeth, enquanto vão se aprofundando na trama e se envolvendo com a empresa responsável pela clonagem.
Num geral, a série é bastante dinâmica e envolvente, alternando momentos leves de descontração com violentas cenas de perseguição, e uma trama complexa envolta em uma série de mistérios. Em alguns pontos da trama, conceitos científicos são simplificados de maneira um pouco grotesca ou até desconsiderados completamente, mas isso não altera a avaliação geral da série. Orphan Black é transmitida atualmente pelo canal BBC HD e está no final da primeira temporada. A segunda deve estrear aqui no Brasil ainda este ano e, para os interessados em assistir todos os episódios da primeira, eles estão disponíveis na Netflix. A temporada mais recente já foi transmitida nos EUA (se é que você me entende), e o canal já confirmou a produção de uma terceira, que deve estrear no ano que vem.
Apesar de ter sido ignorada pelo Emmy Awards pelo segundo ano consecutivo (sem motivo aparente e para indignação dos críticos de verdade), Orphan Black é uma das séries mais interessantes e bem feitas da atualidade, e Tatiana Maslany, vou repetir, impressiona muito pela qualidade da atuação. Certamente um must see de 2014!