Atenção: este review contém spoilers dos três livros. Siga por sua conta e risco.
A trilogia Millennium foi escrita pelo sueco Stieg Larsson nos anos 2000 e lançada na Suécia em 2005, pouco depois de sua morte, se tornando rapidamente um sucesso mundial de vendas. Ela também inspirou quatro filmes, três suecos e um americano e uma minissérie de tv sueca que na verdade são os filmes acrescentados de material extra.
Sinopse: a vida atribulada do jornalista econômico Mikael Blomkvist e da hacker Lisbeth Salander se cruzam para resolver um dos maiores mistérios de uma família industrial sueca, como também do maior segredo de estado do governo sueco.
Logo no início do primeiro livro já percebe-se que Stieg Larsson e sua trilogia Millennium não se tornaram referência nos romances policiais à toa. Os livros abusam da estrutura e dos clichês existentes do gênero: a criação de um grande mistério que servirá de engrenagem para mover a história e que só irá se revelar no fim de cada livro; o trabalho de detetive de uma dupla completamente distinta entre si, Blomkvist e Salander, que esbarram nas dificuldades investigativas padrão apresentadas pelo autor; a criação de personagens misteriosos; personagens escadas que são esquecidos pelo autor e que voltam à trama só para revelar uma informação para fazer a história andar novamente, e etc. O diferencial vem do fato de que os livros possuem alma. Sim, alma. Diferente dos romances policiais padronizados, a trilogia Millennium é recheada de ideologias que Larsson combatia, principalmente as conquistas feministas para a sociedade sueca atual, o tráfico de prostitutas e o feminicídio que só reforçam a perpetuação do machismo na sociedade, além da importância de se combater o fascismo e o nazismo.
O primeiro livro é fechado e mostra todo o arco da família industrial Vanger. É aqui que a história mais interessante acontece, em que Larsson usa e abusa dos principais clichês de tramas policiais. O autor aborda o feminicídio e a violência contra a mulher o tempo todo ao mostrar a investigação de serial killers suecos que matavam mulheres através de dizeres bíblicos.
Durante um evento familiar anual nos anos 60, a futura herdeira do império empresarial Harriet Vanger desaparece sem deixar rastros. Até que Henrik Vanger, o ex-patriarca, após quase 40 anos, decide contratar o jornalista Mikael Blomkvist, condenado meses antes por difamação contra um magnata, para solucionar o caso. Com a ajuda da enigmática Lisbeth Salander, eles conseguem resolver este mistério.
Stieg Larsson
É aqui também que se entende o motivo dos livros serem conhecidos como trilogia ‘Millennium’, já que Millennium é o nome da revista onde Mikael Blomkvist trabalha e é um dos donos. A redação da revista se revela como um local espetacular em que qualquer jornalista idealista em início de carreira adoraria trabalhar, já que mostra toda a produção mensal, e, principalmente os temas das principais reportagens que serão abordadas em cada revista sendo discutidos e investigados. Porém, temos só um gostinho na boca, já que o principal da história se passa na cidade de Hedestad e arredores, durante a investigação do desaparecimento de Harriet Vanger.
O segundo e o terceiro livros são uma história só, que de tão grande que ficou, o próprio Larsson resolveu dividi-los, já que existe uma interrupção brusca no meio da trama. O casal Dag Svensson e Mia Bergman, novos colaboradores da Millennium, são assassinados enquanto investigavam o tráfico de prostitutas da Europa Oriental para a Suécia. O principal suspeito dos crimes recai sobre Lisbeth Salander, que se torna foragida enquanto faz a sua própria investigação para descobrir o verdadeiro assassino. Enquanto isso, Mikael Blomkvist decide continuar a investigação do casal assassinado, e acabam se deparando com Sala e o maior mistério do governo sueco.
A única Lisbeth Salander que importa, a sueca Noomi Rapace
No segundo e terceiro livros Larsson amplia a crítica sobre a violência contra a mulher na sociedade: enquanto no primeiro ele mostrou o estupro sofrido por Salander, agora ele aborda como a mídia impressa e televisiva retrata da pior maneira uma mulher acusada de assassinar dois jornalistas, que por acaso é bissexual. A “lésbica satânica e assassina” na visão da mídia e de algumas pessoas envolvidas no caso, faz com que a sua opção sexual seja posta em cheque o tempo todo, outras vezes é vista como o motivador dos crimes. Esta crítica severa à condução da mídia é outro trunfo do autor. Enquanto romances policiais padronizados utilizam bem os clichês e estruturas do gênero, mas não se interessam por mais nada além de “contar uma história”, Larsson alcança aqui o seu diferencial: não utiliza os clichês e a estrutura dos romances policiais tão bem assim, mas por outro lado consegue levantar tantas perguntas e suscitar várias discussões atuais e necessárias dos assuntos e temas inseridos na trama. Cada caso de abuso de direitos humanos, em especial os de violência contra a mulher, é comentado direta ou indiretamente pelo autor através de algum personagem ou do próprio narrador. E é aí que reside o poder e o fascínio da trilogia.
Nesses dois livros nós conhecemos diretamente o dia a dia da redação da Millennium e todos os casos e reportagens em que os jornalistas trabalham. Como dito antes, o local é um grande centro de luta pelos direitos humanos, inspirando qualquer jornalista idealista em início de carreira. As pautas discutidas pela equipe, as investigações, a corrida contra o tempo para entregar tudo no prazo, a estrutura de publicação, tudo é interessante na redação da Millennium. Algum leitor empolgado pode querer virar jornalista depois de ler os livros. É uma pena que na vida real a redação da revista Expo, que o autor fundou e trabalhou nos últimos anos de sua vida, não seja tão emocionante como a dos livros.
Se Stieg Larsson pode ser criticado por abusar de clichês e estruturas de romances policiais, ele compensa na criação de seus protagonistas. Lisbeth Salander é a grande sensação dos livros, ofuscando todos os outros. Ela é de longe o personagem mais complexo, desconstruindo o esteriótipo do “personagem esquisito”. O autor fornece tanta informação relevante sobre ela e o seu passado complicado com uma mãe espancada pelo pai, além das várias famílias adotivas que passou, que o leitor consegue tecer uma complexa rede psicológica sobre a desajustada social Salander, entendendo as suas reações nas situações onde o autor as coloca.
Já um pouco atrás de Lisbeth, o jornalista econômico Mikael Blomkvist foi outro grande personagem dos livros. Mais em evidência no primeiro livro onde faz papel de detetive, Blomkvist é construído sob o alicerce do “detetive desacreditado” por causa do processo onde perdeu logo quando se inicia o primeiro livro. A sua vida sexual de desprendimento diz muito sobre si: Mikael é uma pessoa de relacionamentos tão abertos que acaba não se prendendo a ninguém, nem emocionalmente, nem quando está investigando algo e se esquece do mundo e seus compromissos. Neste ponto, ele e Salander são muito parecidos.
Os dois Mikael Blomkvist: o sueco Michael Nyqvist a esquerda e o inglês Daniel Craig, a direita
Outros personagens memoráveis dos livros são a diretora da Millennium, Erika Berger; Holmer Palmgreen, ex-tutor de Lisbeth; o designer da revista Christer Malm; dos Vanger: o patriarca Henrik, sua filha Cecília, seu sobrinho Martin, e, é claro, Harriet; o chefe da Milton Security Dragan Armanskij; o novo tutor de Lisbeth, Nils Bjurman; a assistente da Millenium Malu Eriksson; o loiro gigante Ronald Niedermann; o inspetor Jan Bublanski; a detetive Sonja Modig; a policial Rosa Figueroa; os ex-membros da SAPO Evert Gullberg, Gunnar Bjorck e Fredrick Clinton; a advogada e irmã de Mikael, Anikka Giannini; Miriam Wu; o promotor público Richard Ekstrom; o psiquiatra Peter Teleborian; o odioso Hans Faste; e Alexander Zalachenko.
Uma grata surpresa do livro é a quantidade de marcas conhecidas que o autor coloca, fornecendo mais veracidade à história. A Apple (e o Powerbook da época) é citada constantemente como o computador usado pela Lisbeth, além do iBook de Mikael, os carros e modelos da Volvo ajudam a criar o ambiente, os móveis da Ikea e os celulares da Motorola também, assim como a descrição das armas de fogo utilizadas de diversas marcas, além dos equipamentos ultra-modernos da Milton Security.
A revista Expo que Larsson fundou com a sua companheira e que inspirou a Millennium
Cabem também algumas críticas aos livros. Todos eles são muito mal editados, mais os livros 2 e 3, que poderiam ser condensados em um só. Enquanto o primeiro livro é um pouco mais dinâmico, nos outros chega a cansar, às vezes, o autor repetindo os fatos passados. Dessa forma, dá pra pular alguns capítulos de mais de 20 páginas sem problema nenhum, já que o fato que ali aconteceu será repetido algumas vezes posteriormente de forma sucinta por algum dos personagens. A leitura dinâmica também é recomendada em algumas partes dos livros 2 e 3, principalmente quando aborda o funcionamento de algumas instituições suecas, como as diversas polícias e sistemas políticos, do executivo ao judiciário.
Dados reais extensos ao invés de resumidos, que poderiam estar em um extra ou em algum tipo de universo expandido, só reforçam a péssima edição dos livros. A rotina dos dois protagonistas também é mostrada de forma desnecessária, como os vários cafés da manhã e compras de supermercado de Blomkvist e Salander.
Os diálogos no geral passam batido, mas alguns em especial dos livros 2 e 3 são tão mal escritos, que aqui não dá pra culpar somente Stieg Larsson e o editor dos livros, mas incluir aí também a tradutora Dorothée de Bruchard, que a Companhia das Letras fez o desserviço ao leitor brasileiro de traduzir para o português a tradução francesa. Uma descrição como “Sonja Modig fez a primeira pergunta pertinente, querendo saber como Paolo Roberto tinha entrado na trama” (p. 471, livro 2), ou diálogos como “Não vou pedir que você denuncie seus colegas, mas que me avise se perceber que estão tramando para expor a Salander a mais um abuso judicial” (p. 65, livro 3) e “Você é uma fonte. Não vou te citar nem te botar numa encrenca” (p. 65, livro 3), ou ainda “Aqui você não é um jornalista neutro, e sim um personagem da trama. – Mikael concordou de novo com a cabeça.” (p 198, livro 3), servem para empobrecer a história.
A trilogia Millennium vale a pena? Se você se interessa somente pela história, pode se sentir um pouco frustrado no primeiro livro pelos clichês usados em excesso, ou nos livros 2 e 3 que foram muito mal editados. Se o seu interesse são os personagens, vai gostar dos três livros, porque a enigmática Lisbeth Salander é simplesmente fascinante. Agora os livros são recomendados principalmente para homens que insistem que o feminismo não é importante, pois servem para ajudar a levantar questões fundamentais a cerca da violência que a mulher sofreu e ainda sofre bastante na sociedade ocidental.
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Texto de autoria de Pablo Grilo.
Pablo chupa meu pênis!
Gratuito.
Não gostei de sua crítica à trilogia. Você pelo menos leu os livros?
As regras são claras, não lerás os livros para criticas.