Evocando símbolos típicos do Rio de Janeiro, a começar pelo cartão postal do Cristo Redentor, passando pelas montanhas onde se fixam as favelas, A Frente Fria que a Chuva Traz começa com um medley musical, que tem seu ápice no hit Sou Foda dos Avassaladores. Quase completando um jubileu de carreira, e após longos anos sem executar longas, Neville de Almeida renova sua filmografia referenciando seu clássico Rio Babilônia e adaptando a obra teatral de Mario Bortolotto, trazendo para seu filme uma atualidade quase inesperada.
O cenário principal é o Morro do Vidigal, palco de um teatro fútil e patético de garotos e garotas que não precisam trabalhar ou se esforçar para viver. Um grupo de indivíduos da classe média alta usa o dinheiro de seus pais para alugar uma laje na favela, sem em momento algum permitir que a cultura dos moradores comuns adentre o seu cotidiano, apesar de consumirem enlatados de suas músicas, além de lançarem mão dos serviços de alguns dos moradores, pagando doses cavalares de dinheiro basicamente para humilhá-los sem qualquer preocupação.
O texto de Bortolotto – que inclusive tem um papel de coadjuvante, como o segurança entediado e depressivo cuja função é evitar que nenhum morador suba a laje – lembra em partes a obra literária de Breaton Easton Ellis, primeiro pelo caráter anti-burguês e também por explorar, através de diálogos francos e rasgados, o modo de vida junkie e yuppie, ainda que estas versões sejam uma versão paródica do explorado em The Canyons, Abaixo de Zero e Informers, dada a falsidade dos meninos e meninas que dançam semi-nus na sacada.
Um dos pontos altos do filme são os diálogos escrachados sobre sexo, colidindo curiosamente com a nudez pouco explorada no filme, onde o diretor simplesmente abre mão de uma de suas marcas, que é o erotismo explícito e exploração do sexo visceral e não sugerido como neste. A pornografia ainda está presente, primeiro nas falas aproveitadoras dos dois garotos inseguros quanto a sua sexualidade: Espeto (Chay Suede) e Alisson (Johnny Massaro) se valem das drogas para esse fim; e, especialmente, a viciada sem dinheiro Amsterdã, que conta com a inspiração de sua intérprete Bruna Linzmeyer.
O argumento não trata de assuntos fáceis, a despeito dos clichês apresentados. O trato sobre o desdém com os pobres rivaliza em importância com a luxúria pouco expositiva em momentos chave filmadas ao longe, além de outros eventos fortes e completamente desglamourizados. Ambos os aspectos são triviais perto da crise existencial dos únicos personagens que vivem a vida real, e que permitem não se sentir anestesiados pela alienação dos enriquecidos, mesmo quando entorpecidos pelas drogas, ainda que usem as substâncias livremente.
O roteiro de Almeida, Bortolotto e Marcelo Melamed (o qual uma aparição hilária que gera uma nova gama de discussões na trama) trata do niilismo como uma reação natural ao capitalismo exacerbado, aludindo ao exploitation de corpos perfeitos, segundo a métrica padrão, além de desconstruir a nova burguesia brasileira, que se apropria de outras culturas sem qualquer pudor.
Mesmo quando surgem momentos de epifania, o texto não se rende a gratuitas redenções morais, seja com o sexualmente confuso Alisson ou a carente e desesperada Amsterdã, que tem em seu nome o resumo de sua loucura e vazio existencial, apesar de ter conteúdo superável a todo o repertório de seus “colegas”. Seu grito, perto do fim, é formado por uma sinceridade que não se vê em todo o escracho da curta duração do filme, denunciando um mundo habitado por gente falsa e mostrando a fácil transição entre o discurso ideológico e a amoralidade que este A Frente Fria que a Chuva Traz consegue transmitir.
A obra não apela para coitadismos ou irrealidades, mostrando que, mesmo tendo a verdade denunciada nos rostos dos jovens, não há evolução se não houver tentativa de saída da letargia. A visceralidade é o pico de qualidade do filme de Almeida, que acerta em praticamente todos os pontos propostos, mostrando uma grata renovação do cineasta.