Alice Não Mora Mais Aqui sofre de um eclipse eterno na carreira de Martin Scorsese. Isso por estar sempre nas sombras de duas gemas intocáveis do cineasta, Caminhos Perigosos e Táxi Driver, rodado entre esses dois marcos do Cinema americano na divina década de setenta, em plena ebulição da Nova Hollywood, rotulada por tantos clássicos que começavam a não depender mais dos limites dos grandes estúdios. Tampouco dos faraônicos produtores que gente como John Ford, Frank Capra e Alfred Hitchcock tiveram de lidar, sem exceção, antes de Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, Robert Altman e Scorsese, principalmente antes desses quatro (sem esquecer de John Cassavetes e o Brian De Palma dos anos 80) ganharem as ruas e filmarem sem tabus e buscando na verdade a naturalidade e a reinvenção do irreal, a todo custo, nos elementos de um mundo cada vez mais realista, e com grande sentido de autorialidade, e liberdade, sobretudo.
Nesse novo frescor histórico para a indústria, ou ainda, em Tubarão e O Exorcista por exemplo, durante essas típicas inserções embrionárias de ideologia e novas percepções da realidade e ficção, trazendo novas possibilidades e novas tecnologias a normatividade até então do exercício cinematográfico americano, cada vez menos quadrado e menos conservador quanto aos ex-espetáculos fullscreen dos anos 40/50/60, o poder era da criatividade, da ousadia. Scorsese e seus amigos universitários, portanto, podem-se dizer que nasceram na hora certa, e no lugar certo. Eles sabiam que a festiva América de Amor, Sublime Amor não era mais daquela forma colorida, otimista e cheia de finais felizes de antes, não em meio aos efeitos das transformações sociais após o trauma que foi a Segunda Guerra, do boom cultural e do tráfico de drogas, principalmente nos EUA que eles viviam e estavam prontos a retratar com uma câmera Panavision no ombro, mil ideias na cabeça e, principalmente, sem grandes pudores pra isso.
A nova Hollywood adveio de uma nova América, tão bem representada em seus valores e sua vibração, seu jogo capitalista e seus vícios em Nashville e M.A.S.H., ambos de Altman, mas também em Sem Destino, Perdidos na Noite, Rocky, Essa Pequena é Uma Parada, Nos Embalos de Sábado a Noite e, claro, os dois primeiros O Poderoso Chefão de Coppola. E o que todos têm em comum? Simples: A espécie de libertação reencenada de grupos do pós-guerra em diante (homens, gente branca ou pessoas de classe média), e por não retratarem a libertação de quem nunca teve liberdade, antes ou depois das mudanças sociopolíticas que floresciam. Nisso, devem-se destacar três filmes transgressores: Alice Não Mora Mais Aqui, sem dúvida a melhor obra de Scorsese sem um protagonista masculino, algo raro na carreira do diretor, Adivinhe Quem Vem para Jantar, e Os Rapazes da Banda. Uma trindade extremamente representativa ao momento e as questões da época, que só poderia ser produzida nos anos 70 em diante, e que veio a exaltar, em respectivo, a emancipação feminina, negra e LGBT na sociedade moderna, levemente mais tolerante defronte a debates oriundos das novas literaturas, músicas e peças audiovisuais.
Contudo, além de Alice estar entre dois filmes mais famosos de Scorsese, houve um outro fator importante que retirou parte do crédito histórico, e artístico do filme em questão, protagonizado por Ellen Burstyn e ganhadora do Oscar, aqui: O arrebatamento do prêmio de Gena Rowlands, por sua assombrosa e inesquecível atuação em Uma Mulher Sob Influência – diga-se de passagem, dois trabalhos impressionantes. Rowlands sempre será lembrada por ter entregue um dos grandes momentos mitológicos de uma mulher em qualquer filme, mas foi Burstyn que levou a melhor, algo que os críticos mais justiceiros nunca conseguiram perdoar, mesmo se tratando de um grande estudo muito franco e bem-humorado sobre a figura feminina, de uma mãe como uma sobrevivente num mundo sem quaisquer certezas, longe disso. Após perder seu marido, a doce Alice (uma referência talvez a ingenuidade da personagem literária) se envolve com um homem brutal e absolutamente tempestivo em sua violência (Harvey Keitel, excelente). Destemida, resolve com seu filho, ainda mero infante, deixar tudo para trás e partir mundo afora para se encontrar, finalmente, e tentar respirar numa realidade que talvez foi feita para uma mulher sonhar e vencer, também.
Certamente, não é essa espécie de romance dramático que descamba num road-movie inusitado o forte de Scorsese, como também não foi em New York, New York, um musical oitentista sobre o papel da cultura naquele período da América, um dos seus grandes momentos. Porém, seu amor pela história e pela força de uma mulher diante de um presente que precisa ser mudado pode ter motivado o cineasta a fazer deste um dos seus grandes filmes, até hoje. Simboliza, em meros 90 minutos, mais ou menos, um marco absolutamente histórico, divertido e carismático a ponto de nos deleitar com a certeza que nunca é tarde para recomeçar, e de nos lembrar da saudade que certas jóias dos anos 70 nos evocam, mesmo sem muitos de nós nem termos vivido aqueles (esses) idos de som e fúria não tão distantes e que ainda ecoam, livres, em praticamente tudo o que taxamos a alcunha, pedantes como só, de contemporâneo.