A definição fácil, e bastante incompleta de um documentário, é que, em oposição a ficção, se trata de um retrato da realidade. Há muito a dizer sobre o processo narrativo em documentários, o olhar do diretor e as escolhas de montagem, mas é senso comum dizer que são filmes que utilizam o real como matéria prima. Essa definição é a primeira coisa que Elena põe em cheque.
O filme de Petra Costa é todo construído em cima do que não se sabe, mas completa-se no sonho, na memória, nas histórias. O desconhecido é Elena, irmã mais velha da diretora que aos 20 anos foi para Nova York ser atriz e consumida pela solidão, a angústia e a aridez da profissão que escolheu acaba se matando, deixando para trás a irmã de 7 anos. 20 anos mais tarde é Petra que se matricula no curso de teatro da Columbia e busca na cidade os rastros da irmã que não chegou a conhecer realmente.
Elena é um misto de investigação e carta aberta, uma tentativa de reconstruir quem foi aquela jovem e o que a levou a seu fim e ao mesmo tempo uma confissão e desabafo em que Petra diz a irmã mais velha tudo aquilo que nunca teve chance. Poético, mais do que documental, ele se utiliza de depoimentos, imagens de arquivo e mesmo cenas gravadas que lembram video-arte.
O documentário vai se construindo em fragmentos: ouvimos o nome de Elena já na abertura, mas é aos poucos que descobrimos quem é essa pessoa, qual sua relação com a diretora e o que afinal aconteceu com ela. Petra Costa constrói bem sua narrativa e prende o espectador, que se vê curioso para descobrir quem é essa moça, porque está sendo um filme sobre ela e onde está ela agora. Entretanto, conforme a história de Elena fica mais clara, sua personalidade se nubla e, assim como a irmã cineasta, nos vemos diante de um quebra-cabeça sem resposta, uma história que só se pode completar com ficção.
Petra anda pelas ruas de Nova York, fala com a mãe, reconta a história da família e sua ida para a clandestinidade nos anos 70. Contudo, o filme nunca almeja ser sobre a cidade, ou sobre a ditadura, ou famílias na ditadura, é sobre aquela família, aquela moça, aquela história, excessivamente pessoal, Elena é um sopro de ar fresco no cinema brasileiro que busca sempre evitar o íntimo, o lírico e falar das grandes questões sociais do país. É corajoso da parte da diretora ignorar a tradição mais forte do cinema nacional e sem qualquer disfarce falar de si, construir um filme confessional ao extremo, um filme que expurga demônios e acaba entregando algo que falta.
Porque Petra Costa é talentosa e sua poética é fluída e metafórica, o filme transcende a pequena crise pessoal de onde nasceu e se transforma em uma história sobre a arte, a necessidade da arte e os meios pelos quais as pessoas se perdem. Porque ninguém é absolutamente único e a experiência humana tem sempre algo de universal, ao falar de si e de sua irmã, a cineasta fala ao espectador, às dores e angústias daquele que a assiste e entrega um filme que comove, faz rir e chorar e que envolve quem assiste naquele mistério.
Contar o que se sabe é algo muito pouco feito no cinema brasileiro, é mais comum vermos jovens de apartamento em bairros nobres falarem sobre uma vida no morro da qual tem pouca ideia, Petra assume seu próprio universo e constrói ali um mundo. Elena é um filme simples, despretensioso e delicado, mas que se torna memorável porque fala a algo de íntimo e sentimental com uma beleza óbvia. No fim, quando a autora abandona um pouco a história da irmã para contar a sua própria, o filme escorregue para algo meio “meu querido diário” que quebra a narrativa forte que vinha se construindo até então, ainda assim tem qualidade e é um dos acontecimentos mais únicos no cinema brasileiro atual.
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Texto de autoria de Isadora Sinay.
Muitíssimo boa sua análise, toca os pontos certos!
Quando vi o filme no cinema as pessoas ficaram muito descontentes, com direito a vaias e grande parte saindo durante a projeção. Achei interessante ver esta resposta, até porque o filme não funciona para mim também (mas claro que não sou do tipo que vaia no cinema).
Por pior que seja o filme, acho estranho um ‘documentário’, que conta uma história real tão triste seja vaiada. Seriam os espectadores uns insensíveis, vaiando o sofrimento alheio?
O filme não é um documentário. Como você diz, é uma carta aberta, uma confissão. Eu diria mais, é uma auto-ficção da Petra. Sem fazer juízo moral, é um exercício puro de ego, porque o filme é sobre ela, porque só ela tem autoridade de falar sobre si e em como a história da sua família foi absorvida. Ficcionalizar a própria vida é a obsessão máxima e as vezes secreta de todo artista.
E fica claro que a Petra faz uma escolha sobre como vai retratar a sua trajetória. Escolhe a melancolia, a transforma quase em algo hereditário, um mal do artista. Vida nenhuma é só triste ou só feliz, mas o recorte da Petra é sempre lacrimoso.
Eu me identifico com isso tudo, mas o dispositivo fica explícito demais, e acaba que eu não me afeto. Talvez o público que tenha visto comigo também não.
Ficou difícil abstrair que por trás dos belos planos dela dançando na rua existe o ”Fica me filmando enquanto eu danço aqui”. É uma poética que só existe no filme, na ficção, não funciona na vida vivida. E como o filme fica nessa fronteira nebulosa entre se propor ao real (pela tradição do formato de documentário e por contar uma história verídica) acaba que o artificial fica muito explícito.
Mas é sim um acontecimento diferenciado no cinema nacional e se a obra conseguiu tocar algumas pessoas é porque ela consegue funcionar de alguma forma, então eu respeito completamente.
O filme é sim um documentário. Documentários não mostram a realidade, nem existe uma tradição de documentários que mostrem o real, o que existe são recortes da realidade orientados a partir da visão de um cineasta. Todo documentário é tão narrativa quanto uma ficção, mas o material dele é a não-ficção.
Aliás, Elena acaba se inserindo na tradição do documentário do Eduardo Coutinho, que busca justamente borrar essas fronteiras e explicitar o fato de que não existe retrato da realidade uma vez que uma câmera entra em jogo.
Mas fora isso, eu consigo entender bem que o filme não funcione com algumas pessoas, mesmo comigo ele escorregou demais para o “meu querido diário” algumas horas, mas sim, acho que só como experimento de cinema nacional ele já valeu.