Pode parecer exagero, ou olho que sente e enxerga por demais, só que nos primeiros três minutos de Quem Bate à Minha Porta?, já há indícios claros de vários elementos que permeiam até hoje o Cinema de Martin Scorsese: a intensidade na montagem agindo junto a batida sonora extra-diegética, personagens ansiosos, a violência inesperada, o contraponto entre a harmonia da casa e a crueldade das ruas, e a preferência a ângulos de câmera que apostam em contra campo o tempo todo, nos levando a sacar sem explicações didáticas todos os pontos de vista que uma cena ganha e tem para nos oferecer, seja qual for o seu motivo aparente.
Uma riqueza e vibração de linguagens cinematográficas de origem claramente acadêmica (Scorsese fez um curso de cinema ainda jovem na Universidade de Nova York, onde nasceu a amizade com o protagonista de seu primeiro longa-metragem, o genial Harvey Keitel) e aberta a experimentalismos que tanto marcaram outros realizadores de sua geração que cresceu vendo mil vezes seguidas os clássicos antigos de Howard Hawks, Orson Welles e Alfred Hitchcock, e agora, enxergava Hollywood de uma maneira em partes, digamos, subversiva e revolucionária, como se mostrou.
Scorsese já demonstrava a curiosidade básica de qualquer cineasta que se preze: o interesse verdadeiro e forte pelo movimento, pela ação, palavra essa que plateias traduzem apenas por cenas de luta e batalha onde a tônica do movimento é extirpada a favor normalmente do entretenimento, puro e simples. Para o futuro criador de Táxi Driver e Cassino, ainda muito longe de realizar esses triunfos da história do Cinema, a movimentação de sua própria mãe, matriarca de uma casa cozinhando e servindo comida a família na cozinha da residência já serve para abrir uma trama em 1967 que delineia todo o estilo de um cinéfilo tarado pela arte que venera, e ajudou a evoluir com muito questionamento existencial, e visionarismo a base de suor.
A própria não definição das personagens do filme sobre o que elas são, e o que elas querem na vida já denota o uso inspirado de arquétipos de personas que vagam por uma cidade grande como Nova York sem rumo, apenas chocando-se umas com as outras, e o encontro romantizado de um qualquer de paletó e uma garota lendo uma revista é o grande ponto de virada, aqui. Conversam sobre Rastros de Ódio, clássico espetacular de John Ford, e dessa paixão pelo Cinema surge a de um, pelo outro, numa realidade romantizada de violência, açougueiros e cobranças financeiras. Quem Bate à Minha Porta? é o amor, flor que por vezes irrompe da dureza do asfalto.
Já possuído por uma quase que total dependência no poder da montagem, Scorsese já imerge com graça e domínio de causa nos assuntos do seu próprio mundo real, e refilma-os na ficção com leveza, bom desenvolvimento narrativo e uma ótima direção de atores logo na sua primeira história – influenciada em gênero, número e grau por Sombras, o debute fantástico de John Cassavetes que veio quase uma década antes, numa época em que Hollywood ainda se permitia regurgitar experimentações maravilhosas como essa – é válido apontar que outros expoentes desses idos como Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Brian De Palma já estavam iniciando seus trabalhos, também, e Scorsese estava no lugar certo, e na hora certa quando lançou Caminhos Perigosos, em 1973.
Ainda mais violento e confiante que sua primeira empreitada no Cinema – um ano depois da glamourização da máfia no soberbo O Poderoso Chefão –, Caminhos Perigosos foi a constatação do que Quem Bate à Minha Porta? começou a sugerir, enquanto um início generoso e principiante de um estilo que peitou um dos maiores filmes americanos de todos os tempos, e só por isso já merece um certo prestígio. Eis a obra mais inocente da carreira de quem nunca teve medo em ser honesto quanto aos seus princípios, e forte em sua visão verídica de um mundo verídico nas telas, posto que o diretor sempre encarou ambos os mundos, o de lá e o de cá, como possibilidades mais do que reais de se viver, e sobreviver, deixando assim que a morte e a finitude humanas sejam uma constante fadada apenas ao plano real que nos confina.
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