É engraçado, sempre que revejo Táxi Driver, clássico de Martin Scorsese cuja graça já foi discutida e exalada por tantos artigos, cada vez mais parece ser um conto de horror que o notório vagabundo alemão Charles Bukowski dedilhou em alguma guia de calçada, de madrugada, num acesso elegante de um fôlego só. É um tour desavergonhado pela marginalidade mais urbana e orgulhosa do mundo. Na figura de um taxista, e seu carro, onde não se sabe onde começa um e termina o outro, Nova York explode, se escancara num strip-tease de consciência e culpa mundanas, sem jamais ressoar ou fazer sentir-se superficial.
Scorsese, sem querer (querendo), cria a própria mitologia de sua carreira: O neon das noites, o amargo das relações, a escuridão rachada pelas luzes, a violência sem propósito definido… Sintomas de uma selva nunca tão colorida e tão vasculhada assim por Travis Bickle, o motorista que já viu de tudo e não se importa com mais nada, banhado pela danação existencial dos arredores conflitantes. Só que Táxi Driver nunca se desarma, empacotando o personagem da revolta sobre tudo e todos, uma figura unilateral para muitos, só para esconder os chamados de um artista às inúmeras reflexões muito além da sua era, sua realidade, sua (falta de) moral.
Nisso, pode-se constar a genialidade do Scorsese dos anos 70. Não que o mesmo esteja mais óbvio (e está mesmo, desde Gangues de Nova York), mas o caso não é esse: Seus confrontos eram mais fundamentados na ética que na dialética objetiva do ser e seus locais; no interior sobreposto a qualquer interesse pelo exterior, diferente de um Fellini (ídolo do diretor) que sabia trabalhar todas as vertentes de uma forma ainda mais eloquente, e épica mesmo, porque não. Por isso que fica difícil acreditar que o cara de Touro Indomável tenha se submetido a estudos técnicos tão dessemelhantes ao seu passado, de 2004, pra cá, flertando com um Cinema mais aceitável, mais dócil e menos filosoficamente sofisticado, por assim dizer…
Mas como será que Táxi Driver seria imaginado hoje, haveria espaço em 2018 para as andanças e a revolta crescente de um taxista na América decadente de Trump? Provavelmente sim, e de uma forma ainda mais frontal que a mostrada no clássico de 76, algo que talvez retirasse a elegância encenada em tempos mais propícios a romanização do todo. Contudo, algo indica que não valeria a pena, vide todo o charme temporal e o espírito tão característico (e conveniente) do pós-guerra americano que dificilmente seria reconstruído sob o mesmo fascínio conjectural, mais uma vez.
Isso porque a psicologia dostoievskiana que rege o espírito de Bickle na busca por explicações, de rua em rua, para uma vida cheia de conflitos inexplicáveis justamente por estarem cruzados com os caminhos das outras pessoas, incontroláveis como a cidade que constroem dia e noite, ela se expande na tela como se girasse em torno da poluição mental que verte dos bueiros, resultando em absolutamente todas as ações e reações de uma trama tão New Hollywood que chega a doer. Quando o personagem de Robert de Niro, este presente no Top 3 do ator, começa a se relacionar com a jovem prostituta interpretada por uma divina Jodie Foster, assistimos uma tormenta tentando lavar toda a maldade do mundo, mesmo que com sangue. Há ingenuidade no caos.
Há limites para o inferno na Terra. Terror, romance, drama… Agora, acredito mais ainda que nas circunstâncias e peculiaridades culturais e sociopolíticas dos anos 70, para que a história se contextualizasse ao máximo, Bukowski estava sentado naquela guia evocando um dos mais famosos estudos de personagem com a ajuda d’outro cara, tão louco quanto, um tal de Paul Schrader na tentativa de um manifesto tão franco quanto atencioso ao lugar de um cidadão num mundo que ele não entende mais, não se vê íntegro nele e tampouco assim o deseja, tampouco desejado. Scorsese, nisso, resolve filmar um peixe amarelo se debatendo no meio do deserto cujo oásis ele caça, sem saber, de bica em bica, e o resto é mitologia. Um grande filme, contemporâneo como poucos, e que não deve ser inteiramente desbravado, mata virgem que é e merece continuar sendo na posterioridade das artes.