Thomas Harris, escritor conhecido por ter criado a série sobre o mais famoso canibal da ficção, o psiquiatra Hannibal Lecter, dedicou grande parte de sua vida ao personagem. Escreveu ao todo cinco livros, sendo Domingo Negro, de 1975, com relativo sucesso nos Estados Unidos, o único sem o personagem mais célebre. No livro um terrorista planeja um atentado no maior evento esportivo americano, o Super Bowl; em 1981, Dragão Vermelho, traduzido para o português no mesmo ano de seu lançamento, é o primeiro em que aparece o personagem; O Silêncio dos Inocentes, de 1988, lançado no país um ano depois, fundamenta a mais famosa adaptação para o cinema, sendo vencedora das cinco principais categorias do Oscar; Hannibal, de 1999, foi importado para cá neste mesmo ano; e Hannibal – A Origem Do Mal, lançado em 2007, é o último livro, mas o primeiro em ordem cronológica sobre a vida do criminoso. Toda a série foi publicada no país pela Editora Record em boas edições.
Hannibal – A Origem Do Mal procura traçar os meandros da infância do personagem na Lituânia, em plena Segunda Guerra Mundial, e sua juventude na França, em meio a uma busca pela punição dos inimigos que assassinaram as pessoas que amava.
Na trama Hannibal é um garoto de oito anos que presencia a morte de seus pais e dos empregados do Castelo Lecter em uma incursão de insurgentes russos e soldados alemães que o invadem e o saqueiam. Como reféns em um celeiro, o menino e Mischa, sua irmã, sobrevivem ao inverno europeu, porém logo a menina é morta e usada como alimento pelos malfeitores canibais. Suas lembranças se tornam cada vez mais atrozes à medida que a vingança toma forma no menino. A dor do luto o faz perder a fala, ao mesmo tempo em que é levado de volta a sua antiga morada, agora transformada em um orfanato, onde as demais crianças o destratam. Ao ser encontrado por Robert Lecter, seu tio, e a esposa Lady Murasaki, passa a morar com eles na França. Um lar feliz, se não fosse o dano já causado em sua alma.
A história extremamente simplista mal parece ter sido escrita por Harris, que fez de Dragão Vermelho e O Silêncio dos Inocentes dois thrillers instigantes de muito sucesso nos anos 80. A narrativa nada mais é que um amontoado de cenas pouco climáticas e de clichês formuláveis que têm normalmente uma situação-limite (a morte dos pais), em que o protagonista perde a sua essência, passa por uma tentativa de adaptação a esse mundo já estranho, e, no final, comete a vingança que o redime. Uma fórmula usada à exaustão e pouco atrativa caso não seja bem trabalhada, ainda mais se utilizarmos como parâmetro o leitor não esporádico de hoje, exigente com os textos que recebe em mãos.
A trama é rasa por também reduzir Hannibal a um papel determinista, com um futuro o qual não pode fugir. A impressão que se tem ao fazer a leitura deste romance é que o narrador parece tentar explicar a origem do comportamento sociopata e doentio do protagonista, procurando encontrar razões que o levaram à prática do canibalismo. No entanto, falha ao delimitar suas impressões utilizando simbologias dos demais personagens e ações dos inimigos que internalizam em Lecter pensamentos antissociais. A enfermidade mental do garoto, a partir da ideia passada no texto, parece ser explicada por um elemento comportamental, o que por si só não garante que pessoas com histórico familiar e social problemático se tornem assassinas comedoras de gente. Psiquiatras atualmente dividem suas opiniões, que acabam sempre convergindo no fator genético associado à influência do meio, mas ainda sem comprovações científicas suficientes para se afirmar a predominância de um sobre a outra. Se Harris focasse, em qualquer parte do livro, na herança familiar das Casas de Sforza e de Visconti, ascendentes da mãe do personagem e conhecidas por seus atos cruéis na Idade Média, a história teria um pouco mais de concretude, mas esse fato é mal citado no início da história.
Os demais personagens são também mal construídos. Mischa é uma criança idiotizada e a relação com o irmão é pouco aprofundada, a ponto de nem lembrarmos ao final da história que a menina existiu de fato. Para uma figura muito importante para o destino do protagonista, é imperdoável que ela pereça na memória dos leitores, já que sua morte é o elemento traumático que modifica a personagem central. Lady Murasaki é também muito pouco explorada. Talvez a ideia fosse a de mostrar uma mulher sensual e misteriosa que seduz Hannibal, no entanto essa caracterização é falha e pouco empática. O Inspetor Popil, que também tem uma queda pela mulher, limita-se a ser um tolo investigador que apenas interroga o rapaz, não agindo em momento algum, mesmo que tenha uma arguta intuição sobre as suas ações. Os assassinos e saqueadores russos do Castelo Lecter, especialmente Grutas, são caricatos a ponto de adivinharmos seus destinos. Por fim, o personagem-título não oferece medo. Ainda que o pequeno assassino seja apenas um iniciante na arte dos crimes e não tenha atingido o status de um dos grandes vilões da ficção, os assassinatos, narrados de maneira implícita, perdem a força e se tornam anticlimáticos, quase passando despercebidos numa leitura pouco atenta. Não há horror que se sustente sem essa base.
Apesar de parecer um desastre completo, podemos encontrar no livro alguns acertos. A cena de sexo entre Hannibal e Lady Murasaki é cheia de simbologias e literariamente bonita e sugestiva. Interessante também é a forma como a narração, em terceira pessoa, passa a externar, em itálico, os pensamentos do futuro antropófago, dando-nos a sensação de adentrar em sua mente perversa. O final alinha-se com o que já vimos nos livros anteriores, nas adaptações para o cinema e, mais recentemente, na ótima série da NBC, com Hannibal já nos Estados Unidos viajando de trem para Nova Iorque, dando a grande dimensão do futuro, e de Will Graham, que o esperam.
Escrito concomitantemente com o roteiro cinematográfico — de mesmo nome —, também feito por Harris, o romance parece ter sido concebido às pressas, como se o autor não quisesse passar sua criação para outros escritores e preferisse manter seu nome no projeto. A prosa fluida e prazerosa de seus outros romances não é reconhecida neste livro. Um início indigno para um dos maiores vilões da ficção.
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Texto de autoria de Karina Audi.