Mark Millar é cria do mundo pós-era de ouro que Alan Moore tratou de desnudar, em Watchmen. Depois desse marco zero, no qual super-heróis deixaram de ser oficialmente figuras unilaterais, mas capazes de matar também e ter sentimentos tão dúbios quanto qualquer ser humano (que voe ou não), Millar foi o artista das HQ’s que melhor soube lidar com o cinismo que veio após os anos 80. Com uma sociedade bem menos colorida, menos otimista, e mais egoísta e desesperançosa sobre um futuro que, sabemos no nosso íntimo, não será brilhante para todos. Kick Ass e The Kingsman são sobre isso, Guerra Civil da Marvel também, combinando símbolos da paz e da união para se matarem com causas bem menos humanitárias, que no passado. Nada mais é tão simples como era quando Superman e o Homem-Aranha apareceram, e na era moralmente caótica da pós-verdade, o que ficou complicado agora é absolutamente insolúvel. Ficamos céticos sobre nós mesmos, e isso causa um gosto amargo na boca.
Os super-heróis estão de saco cheio. Trabalham porque o governo manda neles, ou para impressionar uns aos outros, mas isso não começou do nada. Em uma antiga viagem de navio, um grupo de amigos encontra uma ilha tão sonhada por um deles, e lá, deparam-se com seres que lhes ofertam virtudes extraordinárias. Após tanto sonhar com este lugar, Sheldon vira o líder deste grupo, e o mais poderoso entre eles: o Utópico. Junto de seu irmão Walter, ambos envelhecem na luta pelo bem do planeta e dos Estados Unidos, pois, se o chamado da ilha foi para um americano, é porque esse foi o país escolhido para salvar o mundo em seus piores momentos. O Legado de Júpiter ironiza o fato de apenas os EUA terem essas figuras, já que não existe o Capitão Angola nem um Batman da Austrália. Essa auto admiração não é poupada na história, uma vez que é ela que leva tudo a ruína, a corrupção, e a paradoxos que custam caro demais para quem um dia já sonhou com utopias.
Utopia mesmo é esperar que o que passou continue, e viva para sempre. O bem e o mal são duas colunas fracas hoje em dia, cada vez mais substituídas pelo necessário, e Brandon e Chloe enxergam isso muito bem. Uma geração revoltada com o sistema, eclética e empoderada pela diversidade, e se o pai deles é a ordem e o conservadorismo resistente, os dois são a chave para a mudança e a falta de conformismo que podem envenenar filhos contra os pais, tal qual uma clássica alegoria de Shakespeare. Millar é astuto o bastante para deixar com que esse embate familiar ilustre muito bem essa questão contemporânea de ceticismo sobre tudo, e claro, sobre nós mesmos. A causa altruísta que consiste o heroísmo já deixou de existir faz tempo, e nisso, o conceito de honra também; uma mera sombra, ou nem tanto. O Legado de Júpiter coloca seres que reles mortais consideram divinos num mundo frio, violento e ultra realista, cuja política infecta a todos e a intriga está sempre à espreita, sem poupar ninguém.
Em meio ao desencanto, uma coisa não se perdeu, pelo menos: grandes poderes sempre carregarão grandes responsabilidades, e num mundo cada vez mais caótico e perturbado pela informação, e desinformação, isso se faz cada vez mais real. Se a recente série da Amazon Prime, The Boys, ainda encontra certo impacto nestas questões de forma bastante eficiente para desconstruir essa idealização nossa de “Como seria bom ter uma Liga da Justiça nos amparando.”, a publicação da editora Panini joga por terra, sem dó, o quão inútil para a nossa paz isso seria. Com seres que poderiam nos pulverizar com o poder da mente dentro dos governos, ou soltos por ai, nossa raça poderia ser extinta ou escravizada de mil maneiras inimagináveis. O Legado de Júpiter é viciante, muitas vezes chocante (certas cenas o fazem impróprio para crianças), inserindo capas vermelhas em uma realidade desrespeitosa cujo sonho americano, aquele dourado e suculento, virou um pesadelo a luz do dia.
Compre: O Legado de Júpiter – Livro Um.