“- Constantine, esse lugar não é seguro pra você. Há coisas livres nessa casa que não deveriam estar à solta na Terra. Você não pode permanecer aqui…”
Se há um perigo real para John Constantine, o macabro detetive do sobrenatural criado por Alan Moore na série Monstro do Pântano e aperfeiçoado em Hellblazer, há perigo até para o leitor. Aliás, o verdadeiro perigo de se ler Sandman é não querer parar mais, tamanha sedução que Neil Gaiman nos apresenta num mundo muito diferente, e lendário, em paralelo com o nosso, mas dominado por sonhos, erotismo, surrealismo e danação em que nada é o que parece – como eu disse, uma realidade muito diferente da nossa, certo? Um dos maiores quadrinhos de todos os tempos, junto de Maus e Watchmen, em que poucas vezes o selo Vertigo da DC Comics foi tão bem representado em sua temática adulta de entretenimento como nessa joia da nona-arte. Um tratado filosófico universal de terror e suspense extremamente inspirador para muito do que veio depois da década de 80, e que segue, com tranquilidade, como um dos grandes trabalhos já lançados pela editora Panini, no Brasil.
Nesta edição que reúne os oito primeiros volumes de Sandman, já é possível notar (lê-se: sentir a flor da pele) o porquê de tamanha notoriedade. Afinal, é notória a sensação de se estar olhando para o abismo, enquanto o mesmo nos contempla junto a nossa aventura com Morfeu, o Senhor dos sonhos (e pesadelos). Uma entidade pálida de roupas negras e que contém nos seus olhos toda a sabedoria profunda de alguém que parece ter sempre estado entre nós, e que nunca morrerá – até porque ele não é um Deus, que precisa ser acreditado para existir. Conjurado por meia-dúzia de feiticeiros que queriam aprisionar a morte, ele vem a Terra e consegue se libertar após 20 anos de cárcere. Agora, Morfeu precisa recuperar o que seus algozes humanos o tomaram: seu saco de areia para fazer a todos dormirem (o nome Sandman não é à toa…), seu elmo sagrado, e o rubi que guarda parte de seu poder etéreo. Ele só não contava ser desafiado para conseguir de volta o que é seu. Logo ele, alguém tão acima de humanos, anjos e demônios de toda espécie.
Morfeu então parte numa jornada não só de resgate do que lhe pertence, mas de autoconhecimento, num conto que não fica sendo apenas sobre ele, mas cuja mitologia delirante também se impõe de maneira impressionante. Morfeu, ou o Homem de Areia que cuida do sono da humanidade e sabe dos nossos segredos melhor que nós mesmos, passa longe de ser um anti-herói, pois não toma lados. Faz o que deve ser feito, tal como a natureza que, às vezes, devasta para reconstruir seus domínios. Com a criação máxima de Neil Gaiman nós vamos ao inferno, entre legiões de demônios, e passeamos com a morte num domingo ensolarado, em Londres, sem que ninguém perceba nada. Em Prelúdios & Noturnos, o convite é dado ao leitor que desconhece Sandman mas sabe que deve ser iniciado e se apaixonar por suas odisseias, seja na luz, seja na escuridão que fazem parte de todos nós. Gaiman não nega isso, mas se aproveita, dando cabo de uma narrativa introdutória repleta de grandes momentos, enquanto flerta com as possibilidades que o surreal oferece ao realismo das coisas, das pessoas, e das nossas condições. Tão frágeis, e tão fantásticas se refletidas por um novo e inusitado ponto de vista.
Assim, eis um começo memorável para se mergulhar de cabeça no abissal irresistível que Gaiman criou, junto aos traços fantásticos de Malcolm Jones, Mike Dringenbger e Sam Kieth, numa iconografia que eleva e sofistica, ainda mais, a sensação expressiva e aguda de se brincar com o fogo, de se revirar um segredo, de sermos detetives em um enorme quarto escuro. Os desenhos aqui não poderiam ser mais eloquentes ao propósito inicial de encantar, e por vezes aterrorizar o leitor, levando todos os olhos a grudarem nas páginas como se disso dependesse as nossas vidas guiadas por Morfeu – aquele que conversa com um adolescente que ama jogar bola e com o próprio Lúcifer em seu trono da mesma forma, afinal, ambos o oferecem perigo nenhum nesta fantasia épica, e sem limites criativos para ser absolutamente inesquecível. Com Prelúdios e Noturnos, ficamos íntimos de uma criatura justa e implacável que também é íntima de nós, e que provavelmente após esta leitura, nos encontrará como um velho amigo em nossos sonhos (ou pesadelos), cedo ou tarde, mas sem que nos lembremos disso ao despertar.
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